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A modernidade somente restou nas lojinhas dos museus: credo moderno, promessas e aparições

Sobre o sentimento de modernidade, poderíamos falar muito. Mas aqui quero me deter ao comportamento. E propor um exercício de reflexão: quais seriam as novidades trazidas e incorporadas em atitudes após a modernidade se consolidar?

Em primeiro lugar, vamos retomar, bem de passagem, o que se convencionou chamar de modernidade. Autor fundamental para tanto é Charles Baudelaire, no seu O pintor da vida moderna (1863). Nele encontramos a definição otimista – nesse texto, diga-se, pois em tantos outros nos confrontamos com o seu pessimismo – do moderno, a saber, sentir-se up-to-date, rompendo heroicamente com o passado, o que perdeu a sua razão de ser e pressentir o futuro mesmo que no presente. Rompimento ou ruptura são termos que poderiam figurar aqui e nos deparamos com a raiz do que hoje é embalado em palavras genéricas, tais como desconstrução ou desconstruído, e que podem aludir desde a uma receita clássica de kibe a um posicionamento de gênero. Em ambos os casos, e antes de mais nada, saúda-se a reconfiguração como uma qualidade positiva. Esse sendo um primeiro marcador de comportamento advindo da aceitação do credo moderno: a condescendência é uma importante aliada do sentir-se moderno.

O outro posicionamento é o que encontramos na locução latina non sequitur – não se segue que. Trata-se de uma inadequação, ausência de lógica ou conexão de sentido entre conclusão e premissa. Digamos que a modernidade veio a se justificar muito mais pelo que ela prometeu do que pelo que ela de fato entregou. E não seria possível mesmo estabelecer essas conexões causais, até porque criou-se uma expectativa sobre algo que nunca existiu e que não contava com referências históricas anteriores. O próprio passado foi sendo recontado para então justificar o que se ansiava em relação ao futuro. É por isso que eventos do passado são revisitados com vistas a serem percebidos como a origem do que se identificou no presente. Seria uma espécie de ajuste do passado às perspectivas do presente. Exemplos? Reconstituir a história do feminismo a partir de Cleópatra ou encontrar a origem da luta de classes na revolta romana de Spartacus. Esquece-se, com isso, que os conceitos possuem uma historicidade da mesma maneira que um Iphone ou um avião. Mas o sentimento de modernidade autoriza inclusive os anacronismos: a fé move montanhas, não é?

Expectativa também é uma atitude à qual o moderno deu vazão e força. Não se trata exatamente de uma invenção da modernidade, mas sim de algo que ela alçou ao protagonismo. Veja: esperança é uma palavra cujo sentido vem sendo demarcado desde as mitologias mais remotas – com destaque para Prometeu e Pandora. Isso para não nos reportarmos à narrativa bíblica. Contudo, as expectativas modernas foram e são bastante terrenas. Elas dão suporte para as utopias e suas nêmesis, as distopias sempre presentes entre nós. Mas a modernidade conseguiu ser mais sedutora em relação à legitimidade dos seus sonhos e para isso devem ter concorrido e justificado tanto as descobertas e invenções de gadgets que todos amam quanto o storytelling, o subproduto da historiografia que veio a se configurar no século XXI. A “jornada” do consumidor, daquele que, tomado pela acídia, vai de um site para outro ou do gamer, – tudo isso se confirma como uma apropriação que o marketing fez dos contos de fada, hoje malvistos.

Originalmente, nas passagens do século XIX para o XX, uma felicidade oportuna foi dar-se conta de que o que era sólido se desmanchava no ar, mesmo que essa frase retirada do contexto do Manifesto Comunista de Karl Marx se referisse à infraestrutura. Mas ela estimulou Eros, um dos mais destacados deuses do politeísmo moderno. A destruição possui mesmo uma atmosfera de envolvimento. Pontos a serem retomados aqui dizem respeito ao fato de que a postura ativa e enérgica da iconoclastia moderna dependeu plenamente da energia e da virtude daqueles que viveram antes da “consciência moderna”: só se é moderno uma vez, na segunda é oportunismo consciente.

E como supor que a crença em que uma coisa pudesse ser mais ou menos avançada chegasse às escolhas e posturas morais? Pensaríamos aqui que essa interpretação pudesse tão somente ser aplicada a tudo aquilo que possa ser parametrizado em relação a objetivos bem concretos. Lembremos de Aristóteles: julgamos uma coisa levando em consideração somente o que ela apresenta como objetivo de sua existência. De uma tesoura, por exemplo, esperamos que ela corte. Quando se evolui na sua capacidade de corte e ergonomia, chegamos num produto mais avançado quando comparado ao que foi seu antecedente. Mas e hábitos e costumes? Eles podem se alterar se as ferramentas mudam. Passamos do uso somente das facas para os talheres nas refeições. Então quando julgamos mais ou menos avançadas as atitudes ou posturas afeitas ao campo da moral e do comportamento na sociedade? Quais seriam, nesse caso, os parâmetros de sucesso e fracasso? Como constituiríamos um critério para dar suporte ao julgamento do que deva ser entendido como ultrapassado ou avançado?

Os adeptos da seita da modernidade são mal-agradecidos em relação ao passado que lhes deu a oportunidade de ruptura. A sorte dos modernos é que eles escreveram a sua própria hagiografia. O storytelling e o conceito de jornada são os seus melhores produtos. Os modernos somente não podem ser objeto da intenção de ruptura: só se é moderno uma vez.

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.