Vivemos um grande transtorno das massas. Em público e em particular, on-line e off-line, as pessoas adotam o comportamento de manada, agindo de maneiras cada vez mais irracionais, febris e simplesmente desagradáveis. O ciclo diário de notícias está repleto das consequências desse comportamento. Embora vejamos os sintomas por toda parte, não enxergamos as causas. Douglas Murray. A loucura das massas: gênero, raça e identidade. Rio de Janeiro: Record, 2021, p. 9.
Como é jogado o xadrez na política contemporânea? O que trazemos das abordagens do passado e que pode contribuir ou não para uma análise do que hoje ocorre? Essas perguntas nos parecem fundamentais, na medida em que adentramos o século XXI com novos hábitos e comportamentos que passam por muitos temas, em especial nas redes sociais, que provocam engajamento.
Comecemos então por essa palavra particularmente focada no mundo que compartilhamos: engajamento. Se tomarmos a segunda metade do século XX, vamos notar e perceber que o indivíduo se engajava em causas políticas num movimento que transparecia identificação mais genuína, ou mesmo inocente, no que dizia respeito à empatia que essas mesmas causas provocavam. Pode-se sim olhar para trás e demarcar inocência nas lutas que provocavam engajamento social. Mas, igualmente, bem pode ser que as mediações narrativas elaboradas pela indústria do entretenimento norte-americano tenham contribuído para tanto. Nota-se ali uma visão bastante idealizada do passado, que parece desenhado para que todos tenham um acesso mais facilitado. Combina também com essa aproximação uma dose de sentimentalismo que tanto tem despertado e estimulado o mais fácil entendimento.
De uma forma ou de outra, o engajamento nesse passado recente estava mais conectado às causas reconhecíveis como políticas ou culturais, notadamente aquelas que transitassem por alterações de comportamento. Nesse caso, observa-se com mais intensidade a transposição para as narrativas dos filmes que de alguma maneira vieram a obter sucesso. Assim, o zeitgeist de cada época supria de associações possíveis os temas que passavam pelos eventos mais ruidosos como a guerra do Vietnam, a luta pelos civil rights, ditaduras da América Latina, dentre outros.
É conhecida a fala de Pierre Nora, historiador francês que, na década de 70, clama pelo retorno dos historiadores aos fatos. Sendo ele um pesquisador que se ajustava à proposta da Ecole des Annales, sua expectativa sinalizava uma mudança de posição em relação aos pais fundadores dessa corrente historiográfica, que no início do século XX buscava se distanciar da histoire événementielle, ou seja, a história que se atinha aos fatos e eventos históricos seriados.
Nora notava a importância concedida ao acontecimento, na medida em que ele repercutia na mídia, e, então, provocava o engajamento em causas quando elas se mostrassem aderidas ao evento. De acordo com o historiador:
Na medida em que efetivamente o acontecimento se tornou intimamente ligado à sua expressão, sua significação intelectual, próximo de uma primeira forma de elaboração histórica, esvaziou-se a favor de suas virtualidades emocionais. A realidade propõe, o imaginário dispõe. Para que o suicídio de Marilyn Monroe possa tornar-se um acontecimento, é necessário, e é suficiente, que milhões de homens e mulheres possam ver nele o drama do star system, a infeliz vendedora que se escondia por trás da supervedete, a tragédia da beleza interrompida, a infelicidade da existência mais dissimulada, a futilidade de qualquer sucesso. E os maiores incêndios escapam frequentemente a quem ateou a menor fagulha: o acontecimento aproximou-se do fato cotidiano, nascido ele próprio no interior do século XIX, onde se elaborava a sociedade industrial. NORA, Pierre. “O retorno do fato”. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995 (primeira edição de 1974). p. 184
Mesmo que distante por quase 50 anos em relação ao momento em que vivemos, Nora foi sensível à identificação que um acontecimento pode ou não provocar em um público mais amplo. O suicídio de Marilyn Monroe provocou engajamento, posto que continha os ingredientes clássicos para tanto: juventude, beleza, morte e o circuito das celebridades. Podemos, então, acolher com naturalidade o que veio a mobilizar o grande público em relação a esse triste acontecimento. Mas o que isso teria a ver com o xadrez político no contemporâneo?
Algumas coisas, dentre elas a possibilidade da fabricação de acontecimentos, mesmo aqueles que, em princípio, não contem com a atenção de um público mais amplo. Além disso, a percepção de que um viés político possa se apropriar daquela narrativa volátil que venha a render frutos e abrir oportunidades. Assim, a prospecção das redes sociais pode sinalizar o que está ou não causando engajamento e o que poderá vir a se tornar um acontecimento. Até aí nada de muito novo, tendo em vista que pandemias, acidentes naturais como terremotos ou furações costumam ser utilizados como motivação política para um alado ou outro.
A novidade aqui é a qualidade do fato gerado e que será politizado. Aqui, abrimos possibilidades de remissão a uma fala retirada de seu contexto, de informações aparentemente atribuídas ao passado, mas que articulam diferentes eventos de distintas épocas, de campanhas publicitárias que estejam aderidas às causas identitárias, do que quer que seja que venha a causar buzz nas redes sociais.
Tomamos contato com uma espécie de curadoria de temas que, uma vez compartilhados, aproximam as pessoas de um ou outro lado do espectro político. Um aspecto mais aprofundado e dedicado é aquele em que se é agressivo, rude ou cruel, sem maiores preocupações com o decoro, para tão somente chamar a atenção e provocar engajamento. Nessa prática, a parametrização de comportamentos ganha grande destaque, uma vez que se pode aproveitar da ubiquidade do narcisismo que se encontra nas causas sociais nossas de cada dia. Esse sendo um assunto para a próxima coluna.
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