Sabe-se que, pelo menos nas civilizações arcaicas, o distanciamento de origem era vivido como um estado de empobrecimento ontológico. E esta ontologia foi prolongada pelas cosmogonias greco-romanas, com o seu ideal epistêmico essencialista e, consequentemente, com a redução do tempo ao mundo da corrupção e das aparências, sobre o qual seria impossível o conhecimento. Como é lógico, é dentro destes parâmetros que se deve entender a função social que os gregos atribuíam à escrita da história: esta devia ser bela e pragmática, dado que os ritmos da vida poderiam vir a repetir-se. Mas, enquanto “arte de memória” e protesto contra a mortalidade a que estavam sujeitos os dizeres e as obras humanas, ela também era monumento que, ao autonomizar-se da physis, lutava contra o esquecimento. Fernando Catroga. Memória, História e historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2021, p. 41.
Adeptos do life-styling bem sabem que as modas são voláteis, passageiras e sem alma. Recupera-se aí um sem-número de estratégias nada instintivas, salvo na ponta de quem consome de modo mais compulsivo e desavisado. Acostumamo-nos a pensar que a moda combina com roupas, sapatos e acessórios, só que não. Reciclamos atitudes e comportamentos de qualquer distância e espessura. Anacronismo é uma tensão que já não existe mais e, por isso, mexemos no passado escolhendo o que mais nos agrada ou veste bem.
É exatamente nesse ponto que se encontra a preocupação com modas intelectuais, que se remetam aos valores e especialmente às atitudes, posturas e posições.
Statement.
Pensemos por um instante nesse termo e no que ele oferece de cobertura. Em português, a palavra declaração, capta um pouco do sentido do termo em inglês. Mas é preciso que essa declaração tenha, em seu entorno, uma atmosfera solene, que envolva um certo temor, bem como sobriedade e segura consciência de sua importância, a sua razão de ser. Roosevelt fez um, quando da declaração de guerra dos Estados Unidos em 1941. Winston Churchill na sua fala à Câmara dos Comuns, em 1940, a do sangue, suor e lágrimas, fez outro. É possível que se perceba a gravidade do que foi pronunciado, uma vez que tais falas provocavam expectativas e tensões, tanto de uma parte como a de outra. Ambos assumiram a responsabilidade de se pronunciarem em meio a uma situação de desconhecimento, sem saber ao certo se poderiam vir a contar com o seu próprio povo, se ele seria ou não se sensibilizado pelo que foi dito.
Mas como são os statements atualmente? O que se vende e se projeta como tendo estofo, alcance e gravidade nos dias de hoje, em que a vida é bem mais fácil para os indivíduos em comparação com aqueles que viveram a Segunda Guerra? Muitos exemplos e todos constrangedores. Risíveis até, se não fossem desrespeitosos com quem chegou e partiu antes de nós. Riqueza enfraquece caráter? Bobeamos e transformamos o nosso cotidiano numa constante busca e criação de parques temáticos? Pode bem ser. O fato é que discursamos e buscamos aparentar virtude quando falamos de nossos pets, no uso de pronomes neutros, na releitura de todo um passado tendo como eixo as nossas próprias e comezinhas obsessões.
Leio uma matéria na Folha de S. Paulo, do dia 5 de maio de 2022 – traduzida do The New York Times e assinada por Azeen Ghorayshi – “Poucas crianças transgênero mudam de ideia cinco anos após a transição, diz estudo.” Um certo Trans Youth Project acompanhou 317 crianças, nos Estados Unidos e Canadá, “que passaram pela chamada transição social entre 3 e 12 anos. Os participantes fizeram a transição, em média, aos seis anos e meio. (…) O estudo revelou que apenas 2,5% dos participantes voltaram a se identificar como o gênero que lhes foi atribuído no nascimento.” Ao final da matéria, Amy Tishelman, psicóloga clínica e autora do capítulo sobre os padrões de cuidados com crianças da Associação Profissional Mundial para a Saúde Transgênero, diz: “É realmente importante que as crianças possam continuar sentindo que não há problema em ser fluida, continuar explorando.”
A narrativa se vale da solenidade havida no tempo em que o Ocidente lutava pela sobrevivência de um modo radical e cotidiano. Há gravidade e circunspeção no tratamento do tema e ele se insere na obsessão contemporânea com o tema do gênero. Essa fala, uma manifestação do statement no contemporâneo, não aparenta constrangimento algum em se respaldar em números tão pequenos, e por isso mesmo se vale do argumento estatístico. É preciso lembrar também, logo no título, que o juízo a que se chegou foi embasado num estudo. Nesse sentido, é lapidar o pronunciamento de Amy Tishelman: ele se justifica pelos resultados do estudo ou pelo que a psicóloga clínica já pensava de antemão?
Leio matérias como essas e me vem à mente um trecho de A day in a life (1967), de Lennon e McCartney:
I read the news today, oh boy
Four thousand holes in Blackburn, Lancashire
And though the holes were rather small
They had to count them all
Now they know how many holes it takes to fill the Albert Hall
As declarações no contemporâneo não se parecem com essa menção a algo que se pretende significativo, mas que parece tão ordinário quanto contar buracos para se saber se cabem ou não no Albert Hall?
Entre em contato com a coluna
labo.behavior@gmail.com