Behavior

Quando o universo conspira a favor de nossas obsessões

Illidge sentia-se muito mais ultrajado pelas virtudes dos ricos do que pelos seus vícios. A glutoneria, a preguiça, a sensualidade e todos os produtos menos elegantes do lazer e da renda certa podiam ser perdoados, precisamente porque eram vergonhosos. Mas o desinteresse, a espiritualidade, a incorruptibilidade, a sensibilidade refinada, o requinte do gosto – tudo isso eram qualidades tidas comumente como dignas de admiração; eis a razão pela qual ele as detestava tão particularmente. Porque essas virtudes, segundo Illidge, eram um produto tão fatal da riqueza como a sede crônica e o café da manhã das onze. Aldous Huxley. Contraponto. São Paulo: Globo, 2001, p. 106. (Primeira edição de 1928)

O título desta coluna é irônico, isto é, pretende colocar em suspeição o que alguém imagina saber. Somente um desatinado poderia supor haver algum tipo de conspiração universal a nosso favor. No entanto, poderíamos falar do zeitgeist, do espírito de uma época, de uma série de situações, atitudes e comportamentos que assinalam algum tipo de coerência suposta. A sinalização de traços que simulem um mimetismo moral funciona bem quando auxilia nas vendas de tudo o que possa vir a ser comercializado, inclusive causas sociais, defesa de minorias e compaixão. Tudo isso no nível das aparências, mesmo que as pessoas pareçam de fato acreditar de coração naquilo a que se ligam por necessidade de sobrevivência. Atualmente, reinventamos a figura do mercenário e ele agora possui suportes metafísicos que conseguem lançar uma nuvem de fumaça sobre o que realmente deseja. Na atmosfera mais sofisticada do capitalismo contemporâneo, mais viável é passar a ideia de que não estamos nessa por dinheiro, mas pelos ideais. E sim, o mercenário ainda existe. Ele é o outro, aquele de que precisamos para incrementar o negócio da utilização das causas sociais como matéria prima. Quando nossos interesses de sobrevivência mais rasteiros se manifestam como se virtudes fossem, é hora de comemoração nas redes sociais.

Mas quando de fato sentimos que o universo conspira a favor de nossas obsessões?

Em primeiro lugar, quando encontramos espaço para a manifestação pública de nossos vícios. Não exatamente todos, uma vez que se pode aprimorar na arte de exposição daquilo que oferece mais ou menos chances de engajamento. Já dissemos antes que parecer bom é uma vantagem adaptativa no contemporâneo, o que já foi percebido há algum tempo pelos wokes, o tipo social que é versado na prospecção de causas que possam se transformar em negócio. O woke é o grande criptoescroque do Ocidente. É nessa direção que podemos camuflar os nossos interesses mais mesquinhos e fazer aparentar que sejam nobres e que carreguem virtudes. As redes sociais estão repletas de casos que se ajustariam ao que foi aludido, uma vez que demonstrar qualidades morais positivas segue sendo o traço mais corriqueiro das mídias na atualidade: quem deseja arcar com os custos de um cancelamento? Trata-se de fazer uma curadoria dos próprios vícios, o que não deixa de ser um dos objetivos de coaching.

Quando reconhecemos a simpatia daqueles que percebem oportunidades de ação conjunta, o que hoje chamamos de parceria, e que no passado era visto como pragmatismo, de longe a melhor palavra para dar conta do oportunismo nos nossos dias. Num momento de terra arrasada em relação aos ideais mais profundos, faz-se negócio em conjunto com outros cúmplices, o que amplia as chances de sucesso. Assim, dependendo do nicho em que você se encontra, não será tão difícil encontrar quem se aproxime por identificação com as perspectivas de aumento de lucro ou da mais simples permanência no empreendimento. As boas causas foram assimiladas pelo capitalismo como um estímulo comercial. E é por isso, mais exatamente, que perdemos os nossos empregos para aqueles que parecem os lobos mais mansos da alcateia.  

Quando se está na agenda das causas positivas através da percepção de que poucos irão se arriscar a discuti-las, ao menos de um ponto de vista cético. Quem se arriscaria a tanto e por que motivos? Imagine você estando num grupo de WhatsApp e se indispondo com alguém que defenda as causas de gênero. Mas pense esse grupo como sendo o de colegas de trabalho. Os riscos são consideravelmente grandes. Essa dificuldade de reflexão, em si mesma, não se traduz num incentivo a mais para que estejamos do lado dos defensores dessas causas? Veja que, em nenhum momento, estou falando de crenças, uma vez que elas não vêm ao caso. A conversa aqui é sobre estratégias de sobrevivência ou sobre como o universo parece conspirar a favor de nossas obsessões.  

Quando se escolhe um lado da política para chamar de seu e se esconde com dissimulação que assim se faz porque mais oportunidades de trabalho você terá. Novamente voltamos àquele ponto de que “pega mal” dizer que você está aqui por dinheiro. Se você estiver – como evidentemente está –, melhor dizer que é por uma causa, pela identificação de coração com as propostas de um candidato A, B ou C, tanto mais se ele possuir um capital simbólico fofo. Das causas deve-se escolher aquelas que tenham algum tipo de contato com situações concretas de injustiça, mas que possam ser retratadas com radicalismo, sequer concedendo espaço para o revisionismo – a não ser que seja por parte do herdeiro dessas pautas. Facilita também operar com signos fáceis de serem compreendidos e não ter qualquer pudor em relação à simplicidade ou às rotulações.

O universo sempre vai conspirar a favor de nossas obsessões, de um modo ou de outro. Nesse campo, estaremos muito além do bem e do mal e mais próximos então do niilismo. Nietzsche continua sendo um grande intérprete do lero-lero moderno ou de sua versão piorada que é o contemporâneo. Encontramos essa disposição para o falseamento do que de fato ambicionamos nos mais distintos momentos da história recente, seja na Alemanha de Hitler ou nos Estados Unidos de Barach Obama. Em ambos os casos, as pessoas se esforçaram para serem aceitas e procuraram dar o seu melhor no acolhimento de padrões percebidos de aceitação.

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.