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Do lugar em que se fala

O gênero “cartas” não é literatura, é algo à margem da literatura… Porque literatura é uma atitude diante desse monstro chamado Público, para o qual o respeito humano nos manda mentir com elegância, arte, pronomes no lugar e sem um só verbo que discorde do sujeito. O próprio gênero “memórias” é uma atitude: o memorando pinta-se ali como quer ser visto pelos pósteros – até Rousseau fez assim – até Casanova. Mas cartas não… Carta é conversa com um amigo, é um duo – e é nos duos que está o mínimo de mentira humana. Monteiro Lobato, A Barca de Gleyre, São Paulo, Editora Brasiliense, 8ª edição, 1957.

Qual seria a posição do narrador nos comentários que vemos sobre as colunas, notícias e informações que encontramos na grande mídia? Digo isso por ser uma pessoa que se interessa pela recepção, ou seja, pelo acompanhamento das repercussões de um público mais amplo acerca do que foi escrito por autores que se encontram no circuito mais típico de legitimação do que fazem: editoras, publicações em jornais, revistas e falas em programas de TV ou YouTube.

Aqui nos deparamos com uma oferta bastante interessante e que possibilita dimensionar as diferentes apropriações do que foi dito por outra pessoa, mas não exatamente qualquer uma. Trata-se de professores e pesquisadores de várias áreas e que, poderíamos dizer, não chegaram exatamente sem motivos reais ao lugar em que estão. Assim, costumamos ver e acompanhar a presença de intelectuais, políticos, economistas, psicólogos, enfim, profissionais de várias matizes e opiniões e que se inserem no debate público.

Alguns meios de comunicação não habilitam o espaço dos comentários logo abaixo das colunas e textos que são publicados. E outros sim, valendo-se da perspectiva da abertura da discussão, crendo e valorizando a reflexão conjunta, ou somente para provocar engajamento, de longe uma expressão mais fidedigna dos nossos tempos. Quem não quer aparecer? É assim, por intermédio das mídias que têm essa opção que chegamos aos comentários do leitor.

Interessa-nos aqui perceber e notar comportamentos em relação aos posicionamentos dos leitores. Vamos a eles, então. Por que as pessoas ficam tão irritadas? Esse sendo o primeiro sinal visível com o qual tomamos contato. Indignadas, revoltadas, bravas mesmo. Parecem até íntimas dos articulistas, ainda que nem mesmo a intimidade facultasse tamanha dose de desafeto. Desconsideram o fato de quem ali escreve possuir uma legitimação acadêmica ou não. Simplesmente, passa-se por cima disso tudo e, servindo-se do que ali foi escrito, passam a atacar o autor, principalmente se, de alguma forma, o que foi dito sai do contexto da monotonia cultural experimentada no contemporâneo.

Em suma, textos que promovam o pensamento, o confronto de ideias, o questionamento de supostos saberes ou a revisão de preconceitos, tudo isso parece demais para a sensibilidade contemporânea. Melhor seria um pensamento que não incomodasse a ninguém e que, de pensamento mesmo, tivesse muito pouco ou quase nada. Nos comentários, valendo-se da crença de que é importante aquilo que se fala, acompanhamos aleivosias que muito dificilmente seriam faladas de modo presencial. Perde-se a compostura com facilidade e parte-se para o argumento ad hominen: ataca-se a pessoa e não o que ela disse.

Isso tudo ocorre nos comentários, espaço que supostamente será lido pelos autores das colunas, o que de longe é um ideal conspiratório. Por que a confiança de que essas agressões serão lidas pelos colunistas? Por que acreditar que será levado a sério o que se colocou nesse espaço? No mais das vezes, o que se observa é o uso oportunista do estudo alheio, uma vez que se não existisse a referida coluna nem o assunto que mobilizou o autor estaria ali.

De que qualidade é essa indignação? E ela se traduz exatamente em que? Eu diria que há uma atmosfera kantiana, percebida por quem evidentemente conhece um pouco da obra do filósofo. Eu me refiro à razão prática, a ingênua crença kantiana de que precisamos somente de vontade para agirmos bem. A qualidade da indignação aqui é essa: parte-se do princípio do ultraje, da surpresa com o que foi dito e da maneira com que se falou. O “como pode” e o “onde já se viu” dão então cobertura para os juízos ali apresentados. Tais pessoas se julgam do lado do bem, da verdade e da reparação do que foi dito de modo equivocado.

Nos grupos de WhatsApp, o caso é diferente. Trata-se então de não se manifestar, não provocar engajamento. E faz-se isso por medo também, especialmente se a pessoa que foi mencionada tiver o péssimo hábito de orientar-se por si mesma, arriscando-se a pensar com a própria cabeça. Nesse caso, melhor permanecer no morno, mas confiável uma vez que já conhecido. Não por acaso chamamos isso tudo de mediocridade, o ambiente que a maioria de nós gosta de frequentar. Um pouco disso está aí nas grandes mídias. Já se sabe antes mesmo de se ler e, por conta disso mesmo, nada vem a mobilizar. Aguardamos os mesmos juízos de sempre, inclusive em relação aos temas importantes – mas que não parecem sê-lo, exatamente pelo modo de sempre com que são tratados.

Assim, até a indignação parece falsa e serve muito mais para se projetar publicamente. Nada de novo aqui: quase não se fala sobre um assunto e o tema segue sendo a própria pessoa. Todo o resto é somente uma escada para falar de si mesmo. Também observamos isso quando o assunto é política, mas nesse caso o posicionamento ganha ares de virtuoso, uma vez que se defende um lado a partir de uma falsa compreensão que seja melhor para todos – cada um pensando nos exemplos e situações que se ajustariam a um ou outro público do espectro político contemporâneo. O cinismo atual bem poderia nos impedir de agir assim, especialmente porque estamos por demais distantes de épocas em que nutríamos de idealismo as falas e posicionamentos de personagens públicas.

Em alguns de nós, o espírito moderno/década de 60 ainda respira e aceitam passar pelo ridículo de aparentar ter uma causa a defender, de modo a nos conferir um lugar de referência entre aqueles que lutaram e ficaram pelo caminho. Mas o que subsiste que ainda não virou mercadoria? O que está fora do radar de oferta e procura e mesmo assim consegue ter legitimidade e lugar de fala?

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.