Precisamos de maiores virtudes para suportar a boa fortuna que a má. François VI (1613-1680) duque de La Rochefoucauld. Reflexões ou sentenças e máximas morais. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 14
Algumas histórias que se lê são de memorável sofrimento. Vejamos o caso de um grande livro do historiador britânico Antony Beevor, O dia D: a batalha que salvou a Europa (São Paulo: Planeta do Brasil, 2019). Essa leitura nos faz repensar se havia certeza de que o nazismo seria vencido pelos aliados na Segunda Guerra Mundial. A recuperação desse passado nos oferece toda sorte de possibilidades para um lado ou outro. Já mencionamos aqui a proposta de uma história contrafactual, em que os historiadores supõem outro desfecho para eventos do passado e então seguem imaginando as consequências. Niall Ferguson, que esteve entre nós no LABÔ, foi organizador de uma obra nessa linha, chamada Virtual History: alternatives and counterfactuals (New York: Basic Books, 1997). Num capítulo escrito pelo próprio Ferguson, nos deparamos com o seguinte caso: “Hitler’s England: what if Germany had invaded Britain in May 1940?” Outro, escrito por Michal Burleigh, recebeu o título de “Nazi Europe: What if Nazi Germany had defeated the Soviet Union?”
Deixemos o gentil Niall para uma outra coluna. Quero dar testemunhos de enfrentamento e de franco contato com virtudes. Nada de business do bem nem da galera que se sente salvando o mundo com canudos de metal que vêm com escovinhas de limpeza que devem poluir mais que 20 garrafas pets.
Em 5 de junho de 1944, na véspera do desembarque nas praias da Normandia, acompanhamos o seguinte relato retirado do livro de Beevor sobre o dia D:
O general Maxwell Taylor alertou os homens da 101ª Divisão Aeroterrestre que o combate à noite seria extremamente confuso. Eles veriam como é difícil distinguir entre os seus homens e os do inimigo. Por essa razão, durante a escuridão deveriam lutar com facas e granadas e só usar as armas de fogo depois do amanhecer. (…) O brigadeiro-general “Slim Jin” Gavin, da 82ª Divisão Aeroterrestre, talvez tenha sido mais comedido em seu discurso. Ele disse: “Homens, nos próximos dias vocês passarão por algo que não vão querer trocar nem por um milhão de dólares, mas também não vão querer passar por isso de novo muitas vezes. Para a maioria, será a primeira vez que entrarão em combate. Lembrem-se de que vão para matar, senão morrerão”. Sem dúvida, Gavin causou forte impressão. Um dos ouvintes disse que, depois da fala tranquila, “acho que iríamos até o inferno com ele”. Outro oficial comandante decidiu adotar a tática do choque. Disse aos homens, alinhados à sua frente: “Olhem à direita e à esquerda. Depois da primeira semana na Normandia, só restará um de vocês.” Não se pode duvidar do nível de motivação da maioria avassaladora dos soldados americanos aeroterrestres. A forma mais eficaz de os oficiais imporem a disciplina por algum tempo fora ameaçar os soldados de não participarem da invasão.” p. 38.
Abnegação, compaixão, capacidade de enfrentamento de adversidades, generosidade e coragem são os valores aqui dispostos. Alguns eventos históricos não desejados podem dar espaço à manifestação de tais virtudes. Tempos de privação são os melhores para tanto, mesmo porque fica evidenciada a sovinice e a miserabilidade de quem não consegue pensar no próximo. Lembremos que pusilânime era uma expressão agressiva naquelas épocas, uma vez que contar com o próximo significava ficar vivo ou não.
Hoje, isso tudo aparece nutelado, e nem sabemos ao certo por que perdemos os nossos empregos ou oportunidades em nossos trabalhos: mas tudo isso continua a ocorrer 24 por 7, acompanhado de tapinhas nas costas, desvio de olhares e humor sem graça. Pusilânimes são as pessoas com que contamos e que não correspondem às responsabilidades das quais são incumbidos. E sim, a agressividade persiste, mesmo que não possamos falar dela. Quem hoje escolhe os nossos inimigos são as grandes corporações capitalistas que ganham uma grana roxa com isso.
A questão que fica aqui é exatamente se precisamos de tragédias e dificuldades para podermos então transparecer, quando possível, os atributos virtuosos postos acima. Ou será que nos tornamos mais mesquinhos exatamente quando estamos numa posição de saciedade e riqueza?
Sem a necessidade mais urgente de sobrevivência, aspecto pressentido como uma segunda pele na maior parte de nossas vidas, nos entediamos e passamos a produzir lutas e causas fictícias. Brincamos com isso nas redes sociais, enquanto damos suporte às big techs que têm o bem e as boas causas como os seus principais produtos.
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