Por que os temas identitários mobilizam tanto o debate de ideias no contemporâneo? Muitas hipóteses aqui. Uma delas passa exatamente pela erupção das redes sociais como o espaço privilegiado para se manifestar e buscar engajamento. Atua-se nelas sem se notar que são um meio, sem nenhum distanciamento. Trata-se de um falso mimetismo uma vez que elas pouco têm a ver com a sociedade cujo nome pegam emprestado. Na era dos contatos corpo a corpo, a dinâmica era bem outra e tínhamos em mente as balizas do tempo e do espaço: quando e onde.
Identidade, engajamento e redes sociais andam juntas e são interligadas. Vai daí que nos deparamos com uma pálida imagem da busca e da afirmação identitárias, num passado não tão remoto e que vinha a mobilizar os mais jovens, especialmente os adolescentes. Talvez seja por isso que o páthos das redes sociais seja mais infantilizado, perigosamente ingênuo, bastante agitado, insaciável e ansioso.
Mas temos outras hipóteses e elas passam pela oferta e procura, assim mesmo, do ponto de vista pragmático e sem qualquer relação com as crenças aparentemente mais arraigadas. O que provoca engajamento sinaliza tendências para o mercado, que tudo faz para se sintonizar, para se deparar com uma moda antes mesmo que ela seja notada enquanto tal. Temos escrito nesse espaço que o woke é o capanga do capitalismo, fingindo promover as boas causas, mas de fato sendo o provedor de manias, práticas, expressões ou comportamentos para as grandes e poucas corporações que nos cercam. Isso mesmo. Quando se fala da guerra da Ucrânia, o assunto não é exatamente esse, mas sim uma identidade em especial, um avatar que se pretende configurar. De um modo semelhante, não falamos de política como no passado, mas sim de nós mesmos, na nossa busca incessante por likes.
As causas identitárias possibilitam ampla repercussão. Fala-se delas ao mesmo tempo em que se está falando de si mesmo. O tema da identidade é uma causa eficiente em relação ao engajamento que se procura nas redes sociais. Como de resto, esse conteúdo é absorvido pela política e pelo mercado naquilo que eles têm de pior: forjar virtudes onde elas não existem.
E, em se tratando da eficiência na mobilização, a matéria – que tem a sua importância – é exibida, postada, colocada à venda e compartilhada por muitos. Dentre eles, poucos que creem ou levam o assunto a sério: como seria possível à política e ao mercado falar algo de sério? Na política, o foco é o poder. No mercado, grana. Essas sendo as monomanias de cada segmento. As causas identitárias servem a ambos como meio para chegarem aos seus objetivos. É bom ter isso em mente quando bater aquela vontade de acreditar num woke ou num político, visto que nenhum deles tem convicção nas virtudes que exibem. Aqui chegamos ao que nos parece ser a hipótese principal e que explica o apelo das causas identitárias na atualidade: business e política.
Mas vamos seguir adiante e nos reportar ao conteúdo ou ao que é dito nas redes socias e repercutido na mídia de qualquer tipo – temos cada vez mais dificuldade para discernir e nos deparar com contraste entre o que é falado nas redes socias e nas ditas mídias tradicionais. É quase desnecessário dizer que não nos informamos sobre esse assunto nessas plataformas, uma vez que elas, como afirmado aqui, são obcecadas pelo engajamento e pelo comportamento de manada. Além delas, a universidade também se tornou provedora de boas causas, isto é, aquelas que agradam ao mercado e à política.
Assim, a discussão mais sóbria a respeito do tema se torna muito difícil, para não dizer impossível. Fala-se de si próprio, amplamente, motivo pelo qual o assunto repercute tanto. Os argumentos tendem a ser ad-hominen: visa-se sempre o sujeito e não o objeto da reflexão. Enfatizando aqui que essa dificuldade de definição agrada infinitamente às redes sociais, porque satisfazem a murmuração, o modo pelo qual Tomás de Aquino definia a fofoca. As redes socias e as mídias em geral, imprensa inclusive, não sobreviveriam sem a fofoca.
Na direção de uma reflexão mais objetiva, nos deparamos com A Loucura das Massas: gênero, raça e identidade, escrito por Douglas Murray e publicado no Brasil pela Editora Record, em 2021. Trata-se de uma obra em que o autor consegue sair do Fla-Flu em que nos metemos e que tem até um nome: as guerras culturais. Passando então pelas causas identitárias a que o título se refere, Douglas Murray conseguiu afastamento para o encetamento dessa reflexão, sendo capaz de perceber os excessos havidos em quem defende o tema e naqueles que o atacam. Digo isso porque é com muita dedicação que se consegue realizar uma abordagem que habilite o leitor a se ver pensando sobre esses objetos de estudo sem se comportar como um cheerleader. O ponto de partida da reflexão é a presença de uma imunidade às críticas, tendo em vista que elas serão percebidas como tributárias de toda sorte de ignorância ou preconceito propriamente dito. E isso é mais presente no contexto atual, sendo que o autor recupera a origem histórica de cada uma dessas causas. Para todos os casos, no presente, não se deseja chegar num ponto de equilíbrio e os radicalismos imperam. Para Murray,
algo que todos começaram a ao menos pressentir em anos recentes é que um conjunto de detonadores foi implantado na cultura. Tenham sido instalados por indivíduos, coletivos ou algum sátiro divino, eles estão lá, esperando as pessoas. Algumas vezes, o pé de alguém os ativa sem querer e a pessoa imediatamente explode. Em outras ocasiões, as pessoas observam algum louco corajoso andar diretamente até a terra de ninguém, plenamente consciente do que está fazendo. Após cada detonação resultante, há algum debate (incluindo o ocasional grito de admiração), e então o mundo segue em frente, aceitando que outra vítima foi abatida pelo estranho e aparentemente improvisado sistema de valores de nossa época. (p. 13.)
Bom observar que, para o autor, a justiça social se tornou uma nova ideologia, que se insere na necessidade de novas crenças após a devastação pós-moderna. Não há dúvida de que esses temas possam conferir sentido e que se configurem em uma nova metafísica. A ortodoxia estando na essência de todas essas causas. A esse respeito, Murray nota que expressões ou práticas que indiquem algum tipo de compaixão, de generosidade, perdão ou agradecimento estão praticamente desaparecidas. A história segue sendo reescrita de modo a demonstrar que estamos no pior dos mundos em relação a esses aspectos.
A contundência na condução de cada um desses temas faz a felicidade das redes sociais, dos oportunistas wokes e da política, como um todo. E, claro, as big techs não param de ganhar dinheiro. E muito poucos aspiram por se deter nesses assuntos de forma mais profunda ou moderada. É nesse sentido que A Loucura das Massas merece ser reconhecido.
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