As teorias da modernização não são hipóteses científicas, mas teodiceias – narrativas providenciais e redentoras – apresentadas no jargão da ciência social. As crenças que dominaram as duas últimas décadas eram resíduos da fé na providência que escorava a economia política clássica. Desligada da religião e ao mesmo tempo expurgada das dúvidas que assombravam seus expoentes clássicos, a crença no mercado como ordenação divina transformou-se numa ideologia secular do progresso universal que no fim do século XX veio a ser abraçada por instituições internacionais. John Gray. Missa Negra: religião apocalíptica e o fim das utopias. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008, pp. 116-117.
Imagine acreditar que estamos caminhando rumo ao melhor dos mundos e que, para tanto, nos bastaria enfrentar alguns obstáculos colocados por gente que quer voltar para trás ou parar o progresso. Pois é. Muita gente com anos nas costas pensa ou aparenta pensar assim – mesmo porque ir contra essa crença coloca a pessoa numa margem de risco, especialmente (e quase somente) se ela estiver numa área de trabalho ligada à produção de conteúdo, como imprensa, universidade, editoras, enfim, a mídia em geral. Há um consenso tácito nessa fé. Não se fala explicitamente desse consenso, que tampouco pode ser verificado ou validado. Mas ele existe, como o dragão na garagem citado por Carl Sagan, em seu O mundo assombrado pelos demônios: a ciência como uma luz na escuridão (São Paulo: Companhia de Bolso, 2006).
Por se tratar de uma abstração, é claro que fica bem difícil dar um encaminhamento que possa conferir assentimento sobre essa fé. Podemos então fazer aqui um caminho inverso, isto é, tentando mapear onde essa crença não existe. Eu penso em locais onde a produção de conteúdo dito inteligente não se faz necessária, como num hospital ou no comércio de bens de qualquer tipo – menos os remetidos à cultura. Pense você na necessidade de se crer em progresso ou avanço social na lida com um ônibus, como motorista ou cobrador, pilotando um avião, na construção de uma casa, como pedreiro ou mestre de obras, como um médico cirurgião ou como um advogado.
Para todos esses casos – menos um pouco para o advogado, que pode ganhar dinheiro com a interpretação de conteúdo dito inteligente – o progresso é o que traz resultados concretos para o que cada profissional está fazendo, nada mais do que isso. Os ditos avanços sociais podem, no entanto, abrir frentes de negócio, o que costuma ocorrer, pois os comportamentos são alterados e novas ofertas de bens de consumo podem então surgir.
Mas as hipóteses que atestem avanço social continuam a ser impossíveis de serem questionadas, sequer defendidas ou atacadas de um modo razoável. A não ser que levemos em consideração toda uma produção de filmes lacrimogênios e que vêm de Hollywood, aqueles que são destinados ao Oscar e que são, evidentemente, dos grandes estúdios. Nos Estados Unidos, após décadas de experiência, na contabilidade no acerto e no erro, educou-se gerações a exercerem a catarse através da combinação calculada entre trilha sonora, casting e histórias para lá de piegas.
Vejamos outro caso, o da especulação milenarista que volta e meia tem seus vaticínios apregoados. Andar de bike, por exemplo, deixou de ser uma coisa legal de ser fazer ou então um meio de locomoção para quem mora nas praias. Passou a ser um discurso pautado na metafísica de salvação do mundo. Aí, pessoas de classe média bem alta passaram a adquirir todo o aparato para andar de bike, além dela própria, e isso tudo na faixa dos 100 mil Reais ou mais. Beleza. A parte que não é legal é acompanhar os entregadores de aplicativos de bike nos bairros com subidas e descidas íngremes das grandes cidades. O que é avanço e retrocesso aqui? Do ponto de vista dos donos de aplicativos de entrega, o lucro aumentou e para eles foi ótimo, houve progresso.
Como justificar que um comportamento, atitude ou posição sejam apontados como sinais de progresso, se sequer sabemos as consequências futuras de suas adoções? De modo semelhante ao que notamos no contemporâneo, juízos de um passado não tão distante são bastante questionados sob a luz, por exemplo, dos conceitos de identidade de gênero ou raça. Como podemos prever que num futuro próximo esses debates não venham também a ser questionados?
Essas são algumas das fragilidades que enfraquecem o debate público que ora se faz, uma vez que, na ausência de lastros, retomamos a mais livre disposição para as opiniões mais subjetivas, mas que pretendem se estabelecer como juízos abalizados.
Neste espaço, ao longo deste semestre, vou apresentar alguns pensadores que nos ajudarão a refletir sobre esse estado de coisas no contemporâneo, dentre eles John Gray e Frank Furedi, que já esteve entre nós em uma das LABÔ Lectures. Ambos os autores, cada um através de um percurso – Gray retomando o gnosticismo e Furedi a partir do questionamento da objetividade das mediações psicológicas –, veem o progresso como uma fé herdada das tradições cristãs. Ou seja, como uma crença de que estejamos rumando para o bem e nos afastando do mal. Pense nessa perspectiva quando cruzar com alguém que se sinta mais avançado e à frente de sua época, pelos juízos ou ideias por ele esposadas e defendidas: o espírito cruzadista parece mesmo ter vida longa no Ocidente.
Entre em contato com a coluna
labo.behavior@gmail.com