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A semana de 22 foi uma quermesse provinciana?

Como observa Trivers, a evolução favorece o erro útil: “A ideia convencional de que a seleção natural favorece os sistemas nervosos que produzem imagens do mundo cada vez mais precisas tem de ser uma concepção muito simplista da evolução mental.” Na luta pela vida, um gosto pela verdade é um luxo – ou então uma incapacidade: apenas pessoas atormentadas querem a verdade. O homem é como os outros animais, quer comida e sucesso e mulheres, não verdade. Apenas se a mente torturada por alguma tensão interior tiver se desesperado da felicidade: então ela odeia sua jaula-vitalícia e continua a buscar. John Gray. Cachorros de Palha: reflexões sobre humanos e outros animais. Rio de Janeiro: Editora Record, 2013, p. 44.

As efemérides no contemporâneo existem para facilitar a vida de jornalistas e intelectuais, pois são uma pauta pronta. Requenta-se ali o acontecimento e jamais se faz qualquer tipo de revisão historiográfica, porque ninguém quer colocar a sua sinecura em risco. O historiador Capistrano de Abreu dizia que tais fatos eram como borras que vão permanecendo ali sem qualquer esforço de pensamento. A borra mãe já se perdeu há muito tempo.

Historiadores bem sabem que os fatos históricos existem quando são legitimados, uma vez que nem todas as ocorrências no passado atingem esse patamar. E, muitas vezes, o que concorre para isso guarda proximidade com testemunhas do ocorrido e que legitimam a si mesmas na continuidade de seus negócios e afazeres que envolvem a conquista de espaço e vaidades.

Eventos podem vir a ser consagrados ou não. Podem alcançar a unanimidade ou não. Alguns estão mais diretamente ligados à perpetuação, especialmente quando facultam a criação de cadeiras universitárias e habilitam a produção de spin-offs. Fatos assim não são de brincadeira. Eles são tailor-made, feitos sob medida para quem entrar no bonde.

Uma das maneiras de perceber a qualidade das efemérides é ficar atento ao nível de objetividade com que são tratadas – ou se as abordagens são laudatórias e, especialmente, quando fingem objetividade mesmo quando não a possuem de forma alguma. Nas ciências humanas, é possível mimetizar a objetividade das ciências exatas e fazer parecer que o que se fala e defende de fato possui uma lógica e sentidos comprováveis.

A aceitação da modernidade e de tudo o que vem com ela – destruição, expectativa, falsas novidades, superestrutura turbinada, danças das cadeiras do poder, autoelogio vanguardista, abertura de todo tipo de espaço para toda sorte de oportunistas – impôs e normatizou a defesa de si próprio, sem que se leve em consideração a parcialidade. A modernidade marcou o momento em que o roubo no jogo passou a ser visto como uma jogada inteligente e oportuna. E, com ela, abriu-se o espaço para a negação do passado, uma vez que ele se torna uma escada, que perde a sua finalidade de existência assim que se chega ao ponto em que se desejava estar.

Ao mesmo tempo, de modo recíproco, o passado é necessário como um contraste. Os modernos somente são criadores quando diante da destruição e da negação do que era feito antes deles. Quando envelhece, a modernidade se revela como fraude ou decoração de interiores. Ela é dependente de sentido da mesma forma que o cristianismo. Hegel segue sendo o patrono da modernidade e Nietzsche o é às avessas, na medida em que é um arauto de seus insucessos. Em relação a ela, somente aceitamos os testemunhos que vieram do seu interior, da dinâmica e da logística remetida à sua estratégia de imposição e demarcação de território.

A modernidade deve ao proselitismo cristão a expectativa de superação e de antecipação, e, nessa direção, ambas as iniciativas se abastecem e se legitimam na ansiedade. Do mesmo modo, tanto um quanto outro são severos em relação a quem ousa pensar de modo distinto e seguir outra cartilha. Numa chave se diz heresia e na outra reacionário.

O moderno é arrivista por natureza. Estava à porta, olhando pelo vão e à espera do momento ideal para se dar a visibilidade e os holofotes, de longe uma meta a ser alcançada. Imagine a sensação de potência que é a de se sentir avançando os ponteiros do relógio em meio a uma epifania do aggiornamento!

Quem impôs a modernidade foi o capitalismo mais avançado, aquele que conseguiu melhor transformar a estética em uma economia dos gostos e sensações. Por conta disso, tornou-se objeto de aspiração e desejo das elites fanfarronas e provincianas.

Nas ex-colônias, a modernidade deu o ar de sua presença por meio da preocupação com a troca de armários e com a escolha das roupas de domingo, aquelas que anteriormente eram usadas para as missas. Foi-se para as vernissagens como quem até então ia para as quermesses do mês de julho. No Brasil, a modernidade trouxe novas oportunidades para melhor se aproximar da antiga metrópole, e sua validade pode ser averiguada pelos novos produtos de mercado que ofereceu.

E o produto que mais contou com dedicação foi o da revolução, ou seja, a aceitação de que quebramos barreiras, rompemos estruturas e promovemos avanços e progressos nos costumes. Essa é a metafísica que nos é apresentada há cem anos, e o resto segue sendo algo parecido com os temas escolhidos para a festa de seu filho num buffet infantil, contanto que ele esteja localizado em algum bairro fashion.

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.