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A persistência do drama nas narrativas políticas

A história nos relata alguma coisa? Não, é Alain Decaux quem relata, ou melhor, relatava. Não teria ele representado para um grande número de pessoas, em nossos monitores de televisão na década de 70, o rosto e a voz da história? Não eram elogiados precisamente os talentos do narrador? Aliás, não se encontra em textos escritos por historiadores profissionais, empenhados em fazer conhecer um determinado livro de história, que esse se lê como um romance? Lê-se de um extremo a outro, esse livro universitário, sério, que escapa ao suposto tédio suscitado por obras desse gênero. Nessa fórmula lisonjeira, tão gasta quanto frequentemente utilizada, tudo subsiste no como. (…) A montagem, a trama, a escrita permitem a vocês, leitores, a possibilidade de abordar este texto como se tratasse de uma obra de ficção; vocês podem abandonar-se ao prazer da leitura, adquirir instrução de forma divertida. (François Hartog. Evidência da história: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p. 173)

Você bem sabe que a crença na narrativa foi posta em descrédito quando ela foi absorvida pelo storytelling. Toda aquela emoção calculada para fazer com que a mercadoria se torne fofa e seja tão atraente quanto um pet. Se você ainda não percebeu essa logística de captação de atenção e de entrega de conteúdo, as coisas não vão bem para você. Provavelmente, as conversas que você tem fora do trabalho não estão se sustentando e duram um tempo muito curto, aquele das propagandas de TV, que queremos que logo passem e não suportamos tanto assim quando as vemos novamente.

E por que isso acontece? Mais exatamente porque a condução da história não desperta a mínima atração nem gera a mínima curiosidade. Leve em consideração que quem produziu uma narrativa para lhe estimular a comprar um produto não tem nenhuma sensibilidade com a história que deseja contar. E se você se tornou cativo desse tipo contação de história, você está em apuros: abandonou ou não descobriu a literatura clássica, aquela que está bem distante do marketing.

O preocupante é que essas narrativas não estão mais alocadas nos contos de fada, ou mesmo nas historinhas que costumavam ser contadas para crianças. Elas migraram para o cotidiano, penetraram e lançaram luzes sobre o que até então tomávamos como histórias sérias. As narrativas sobre a política ou sobre o passado também se encontram aí, sendo esse o foco de minha reflexão.

O maniqueísmo segue sendo uma referência na estrutura dessas abordagens e é com frequência que identificamos quem representa o mal ou o bem. Entendimento que também é levado em consideração na criação do clima da história a ser contada. É por isso que se alcança, aqui e ali, os tons de dramaticidade que somente causam empatia quando o interlocutor está do mesmo lado do narrador.

Acompanhamos esse tipo de construção narrativa na mídia profissional e ele é feito por jornalistas e intelectuais. Muito já se disse sobre a participação conjunta da imprensa no crescimento da polarização. Ou seja, a mídia é um agente participante da ansiedade provocada pela politização de quase tudo. Acredito que o engajamento midiático, que se dá a partir de narrativas simplificadas, seja bastante responsável por isso.

Mas isso não quer dizer que uma mesma estrutura narrativa consiga chegar a todos e causar emoção. Num certo sentido, tenho dúvidas se a emoção inclusive não é calculada. Mas, vejamos. O que causa indignação difere de um para outro. Há uma dramatização da revolta que se diferencia de pessoa para pessoa. Assim, uma situação que envolva tragédia, como um crime, é notadamente distante de uma outra que passa pelos traumas políticos. E bem pode ser que os casos rememorados tenham repercutido mais num grupo de pessoas do que em outras, ainda mais em um país como o nosso, em que é notável o fosso existente entre diferentes classes sociais.

Falamos neste espaço que as classes sociais não podem mais ser diferenciadas somente pelo acesso à renda. A escolaridade deve ser posta em destaque, mas não somente. O acesso aos bens de cultura abstrata, que envolvem os produtos audiovisuais com que se tem contato, o tipo de cozinha que se acessa, as expressões usadas, dentre outros, são fatores que definem se um indivíduo pertence a uma ou outra classe social.

Assim, as narrativas que se ligam às pessoas que são mais voltadas para as lidas do cotidiano, quando a sobrevivência impera, seguem um itinerário que se aproxima das preocupações com segurança, saúde ou família. Esses temas não são os que mais afligem a todos. É aí então que as narrativas costumam ser mais idealizadas, mesmo porque as dificuldades não são exatamente as mesmas.

A incomunicabilidade se encontra no entrecruzamento dessas diferentes narrativas. A dinâmica do storytelling cabe para os dois casos aqui dispostos, mas os teores são diferentes. Para um caso, o cotidiano se faz bem presente e, para o outro, é a demonstração de virtude que mais se destaca. Algo que passa muito perto do sentimento de superioridade, uma vez que quem fala se coloca no lugar de preocupação com os outros, que são inconscientes do malefício de suas escolhas.

Em uma estrutura, as palavras que aparecem são medo, ódio e ressentimento. E em outra, indignação, secularismo e medo calculado. Em ambos os casos, poderíamos pensar em matizar o que está sendo colocado para ser valorizado pelo outro, funcionando então como uma moeda, e o que não. Creio que muito dificilmente poderíamos chegar num ponto em que verdadeiramente acreditássemos naquilo que é dito. As falas somente almejam funcionar para os próprios interlocutores, na economia das trocas do dia a dia entre pares e nada mais.

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.