O Vazio Existencial na Contemporaneidade

Quem arruma a cama de quem começa uma guerra?

A pergunta acima é uma provocação bem atual. Se considerada em seu sentido literal, não deixa também de ser curiosa, mas não é de modo algum abstrata, pois surgiu a partir de um episódio real.

Em meio ao atual conflito entre Rússia e Ucrânia, um jovem, recorrentemente agressivo e triste, do alto do seu reconhecido vazio existencial procura atendimento espiritual. Estava ansioso, pois queria dizer que havia encontrado um motivo real para viver: acabara de se inscrever voluntariamente para lutar na guerra, em favor da Ucrânia. Surpreendendo-o, seu conselheiro espiritual respondeu, quase irrefletidamente, tudo bem, mas você já arrumou sua cama hoje”? Impossível não comparar esse jovem com aqueles outros que devem deixar mãe, pai, estudos, sonhos, para “obrigatoriamente” lutarem uma guerra com a qual muitas vezes não concordam[1].

Voltemos àquele “valente jovem voluntário de guerra”, que, um tanto constrangido após a provocação de seu conselheiro espiritual, se deu conta de que não fazia sentido alistar-se sem antes enfrentar uma batalha pessoal contra o comodismo preguiçoso de não arrumar a própria cama no auge dos seus 20 anos.

O relato acima nos dá oportunidade de refletir sobre algo talvez um pouco menos “heroico”, mas não menos importante. É necessária uma certa tensão para viver! Talvez uma provocação, um desafio ou outro nome qualquer que se possa dar. Na logoterapia, essa “tensão” ou provocação tem nome: noodinâmica.

É muito importante não nos atermos apenas no que adoece as pessoas, mas considerar o que as mantém saudáveis, pois “uma certa tensão é um pré-requisito indispensável para a saúde mental.[2]

Viktor E. Frankl, fundador da logoterapia, define a noodinâmica como “uma dinâmica existencial num campo polarizado de tensão, onde um polo está representado por um sentido a ser realizado e outro polo pela pessoa que deve realizá-lo”, ou seja, uma certa tensão não nos provoca apenas no como se deve fazer, mas também no que se deve fazer e, sobretudo, quem deve fazer.

Parece importante lembrar que o psicólogo vienense não é um filósofo de escritório, desses que inventam teorias ou ideologias do alto de suas mesas coloniais ou círculos intelectualescos, muito engajados em erradicar o mal do mundo do profundo interior de suas mansões! Viktor Frankl enfrentou, ele próprio, as tensões da vida, e não apenas aquelas vividas nos campos de concentração de Auschwitz e Dachau, mas igualmente as que cada um de nós enfrentamos em nossa pobre existência humana.

Para enfrentar as tensões da vida, são necessárias atitudes concretas, pois a nossa vida se realiza exatamente no âmbito de nossas escolhas diárias, no exercício da nossa liberdade e responsabilidade.

A noodinâmica é o contrário daquela “higiene mental” ou “equilíbrio zen” buscados por muitas técnicas terapêuticas ou espiritualidades desencarnadas. A “homeostase” biológica ou estado livre de tensão não pode ser uma meta de vida, simplesmente porque é impossível de ser alcançada. É muito curioso pensar que o suicídio não é um fenômeno restrito a pessoas com poucas oportunidades ou necessidades básicas não atendidas. Ao contrário, é impressionantemente grande entre as camadas sociais mais elevadas e em países de IDH elevadíssimo.

Podemos, aqui, lembrar das palavras do filósofo alemão F. Nietzsche, em seu Crepúsculo dos Ídolos, repetidas muitas vezes por Frankl: “quem tem um para quê viver suporta qualquer como.[3]

Notamos pais, mães e educadores em geral cada vez mais constrangidos pelo medo de causar trauma em seus filhos e alunos – e por isso abdicam de propor ideais exigentes, responsabilidades concretas, que seriam certamente desafiadores, mas também motivadores para alcançar sentido.

Isso, sem dúvida, é de se lamentar, pois, como diziam os antigos, “Deus perdoa sempre, os homens às vezes, mas a natureza nunca”. E seria importante para o processo de maturidade emocional das nossas crianças e jovens serem provocados por quem mais os ama, posto que a vida o fará muitas vezes e sem a menor piedade.

Afinal, pode ser que a vida nos provoque questionando-nos se já arrumamos a cama antes de irmos à guerra, se estamos dispostos a ajudar um familiar ou amigo doente, instando-nos a corresponder com fidelidade a um amor, a superar uma mágoa ou ressentimento[4], a, apesar das dificuldades e frustrações momentâneas, trabalhar para sustentar nossos amores, enfim, nem sempre a “tensão” é maléfica, tampouco a angústia.

A angústia, aliás, é um afeto que nunca mente, pois sempre nos indica que algo não vai bem em nossa vida – e tantas vezes é aquele instrumento noodinâmico que nos desperta a consciência, verdadeiro órgão do sentido.

O ódio pode simular certo amor reprimido ou não correspondido, a inveja pode enganar uma certa frustração pessoal, a murmuração pode esconder um certo comodismo, mas a angústia não! Ela nunca mente. Se está presente, é porque algo não está bem.

Por que não sustentar a angústia, ou melhor, enfrentá-la, ouvir o que ela tem a nos dizer sobre a vida, sobre o mundo e tudo que é alteridade? Uma certa tensão, uma certa provocação, não deve ser paralisante.[5] Ao contrário, pode ser justamente aquela força de um guindaste que nos impulsiona a viver e realizar sentido.

Diante das tensões e angústias da vida, temos muitas opções, e certamente muitas delas são válidas. A logoterapia nos ensina, sobretudo, que não devemos fugir das tensões ou sequer reprimi-las. Devemos, ao contrário, sustentá-las, isto é, ouvi-las, nomeá-las, enfrentá-las e até aprender a conviver com elas, sem que isso impeça a realização de uma vida rica de sentido.

O primeiro passo é reconhecer que existe o incômodo e o segundo nomeá-lo. Em seguida, partir para o enfrentamento, que pode ser a busca da resolução ou a aceitação de que ele existe, não tem solução e será necessário conviver com ele. Não se trata, portanto, de entender o que eu espero da vida, mas o que a vida espera de mim.          

É necessário transformar o monstro em palhaço e certa dose de provocação e tensão pode ajudar bastante. Afinal quem arruma a cama de quem começa uma guerra?

Referências

BOWEN, Jeremy. Guerra na Ucrânia: os jovens ucranianos que abandonaram estudos para lutar, disponível em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60732002.amp em 14/03/2022.

FRANKL, Viktor. Em busca de sentido. Um psicólogo no campo de concentração. VOZES. 51a Edição. Petrópolis, 2020.

NIETZSCHE, Friedrich, Crepúsculo dos Ídolos. Trad: Paulo César de Souza. São Paulo: CIA DAS LETRAS, 2006

MAZZIERO, Kelma. Um olhar frankliniano sobre o ressentimento, disponível em https://offlattes.com/archives/10974 em 19/03/2022.

LOMBARDO, Gilberto Jr. O medo que paralisa, o vínculo que salva, disponível em https://offlattes.com/archives/7914 em 19/03/2022.

[1] BOWEN, J., Guerra na Ucrânia: os jovens ucranianos que abandonaram estudos para lutar, disponível em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60732002.amp em 14/03/2022.

[2] FRANKL, V. E., Em busca de sentido. Um psicólogo no campo de concentração. Ed. Vozes. 51a Edição. Petrópolis, 2020. p. 129.

[3] ibidem.

[4] MAZZIERO, K., Um olhar frankliniano sobre o ressentimento, disponível em https://offlattes.com/archives/10974 em 19/03/2022.

[5] LOMBARDO, G. J., O medo que paralisa, o vínculo que salva, disponível em https://offlattes.com/archives/7914 em 19/03/2022.

Imagem: jovens ucranianos em alistamento voluntário para lutar na guerra contra a Rússia (BBC News Brasil)

Sobre o autor

Gilberto Lombardo Jr

Mestre e Bacharel em Filosofia, com especialização em Metafísica e Ciências pela Pontifícia Universidade da Santa Cruz (Roma). Docente e Diretor da Faculdade de Filosofia do Instituto São Boaventura. Docente do curso de Filosofia do Seminário Maria Mater Ecclesiae do Brasil. Pesquisador do grupo de pesquisa "O Vazio existencial na contemporaneidade e as possibilidades de realizar sentido", do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.