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Quando falar de política se torna um vício de comportamento

Em uma conversa adulta sobre política, poderíamos chegar a uma conclusão de que o contato com ela termina por nos tornar agressivos, mais fechados e preconceituosos do que em qualquer outra situação. Principalmente quando estamos presos em duas referências polarizadas. É muito difícil que consigamos sair dessa situação, até mesmo porque ela é a mais desejada por ambos os polos: o maior cabo eleitoral de um político que disputa um cargo majoritário é o seu oponente.

Eleições desse tipo polarizado vieram para ficar, sobretudo porque elas atendem às ambições dos principais interessados, os políticos. Não fosse assim e conseguiríamos abordar o tema com a frieza que teríamos para falar de plantações de tomates ou pepinos. Mas não. A política nos consome e, onde ela toca, desagrega. No caso sobre o qual nos referimos, as eleições de 2022, a revelação de seu voto pode isolá-lo, provocar desemprego ou favorecê-lo e fazer com que sua carreira decole. Entretanto, tudo é relativo e, na política, bem sabemos o que é a volatilidade.

E como chegamos a esse ponto? Por uma série de fatores, seguramente. Mas temos aqui algumas hipóteses. Desconhecimento da história é uma delas. O passado vem sendo colonizado pelo zeitgeist do presente, diga-se, o que o marketing rastreia. A década de 60 do século passado é o período mais referenciado, porém não somente. A maioria da produção literária ou de roteiros de filmes ou séries revisita o que cada roteirista entende que ocorreu no passado a partir de toda sorte de idiossincrasias e anacronismos. Assim, imperadores romanos podem virar líderes populistas, Cleópatra, a primeira feminista, e assim por diante. O passado vem sendo planificado e simplificado, assim mesmo, do modo mais banal possível. Falamos do presente quase que o tempo todo, mesmo quando nos referimos ao que já aconteceu. Afinal, quem se importa com os mortos? Sugiro aqui a leitura de Usos e Abusos da História, de Margareth Macmillan (Record, 2010), obra que descortina o vale-tudo que a política faz com o passado.

Minha segunda hipótese é que o ponto a que chegamos diz muito sobre nós mesmos, sobre a nossa natureza. Eleições polarizadas e que não abordam propostas de governo, mas, sim, costumes e comportamentos morais bem se ajustam ao desejo de falar mal do outro, da fofoca e da deduragem. Exibir virtudes em público tem sido uma recorrência na história. Já fizemos isso na inquisição medieval, na caça às bruxas, aos judeus, comunistas no macartismo e às mulheres francesas que foram perseguidas após a libertação de Paris. Despir as pessoas em praça pública desperta em nós o desejo de parecermos puros, do lado do bem: quando exibimos a nossa virtude, parecemos melhor do que realmente somos e acreditamos nos distanciar da mediocridade que nos ronda. A política assim polarizada dá guarida e estímulo a essa exposição. Temos espaço aberto para expor a nossa bondade e pureza de coração, e as redes sociais se ajustam a tudo isso de modo admirável: podemos fazer home-office de bom-mocismo.

Falar de política pode ser um vício de comportamento, na medida em que não temos a mínima noção do critério que nos faz apoiar um ou outro lado do espectro político. Sequer sabemos por que defendemos um lado e não o outro. Transformamos a loteria de nossas escolhas em algo que pareça racional e lógico. E quem tem mais recursos na língua, mais domínio da fala articulada, tende a se sair melhor nessa camuflagem. Pode ser até que a pessoa acredite na ilusão criada para si mesma. Christopher Achen e Larry Bartels[1] (Democracy for realists: why elections do not produce responsive government. Princeton, 2017) resumem essa situação da seguinte forma: as pessoas racionalizam as suas preferências pré-existentes.

Esse procedimento reafirma a história passada do nosso país, naquilo que ela tem de diferenças, animosidades e humilhações de uma classe que se julga superior em relação a outra percebida como inferior. A elite brasileira, a arte e a cultura excluem e ridicularizam quem erra no português, quem segue uma religião, enfim, quem é pobre. Quem quiser entender a política brasileira sem preconceitos deve se concentrar no ressentimento daqueles que não possuem mediações mais racionais e articuladas para terem suas falas minimamente aceitas.

O que falta a essas pessoas é a habilidade para fazer os outros acreditarem que aquele que fala é movido pela lógica argumentativa. Associar ideias que transitem pelas artes, literatura ou cinema leva tempo e custa caro. No Brasil, é preciso ter grana para exibir consciência social.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.