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Sobre aprender a ver o mundo como não dotado de sentido

Pode parecer que a ciência e a ideia de progresso convergem, quando na verdade se opõem. Entre os ateus contemporâneos, não acreditar no progresso é uma blasfêmia. Apontar as falhas do animal humano tornou-se sacrílego. O declínio da religião serviu apenas para fortalecer a ascendência da fé sobre a mente. A descrença, hoje, não devia começar questionando a religião, mas a fé secular. Uma forma de ateísmo que se recusasse a reverenciar a humanidade seria um autêntico avanço. (…) Supor que o mito do progresso possa ser descartado seria atribuir à humanidade moderna uma capacidade de aperfeiçoamento ainda maior que aquela que ela mesma se atribui. John Gray. O silêncio dos animais: sobre o progresso e outros mitos modernos. Rio de Janeiro: Editora Record, 2019, p. 59.

John Gray é um desses filósofos que fazem com que experimentemos a sensação de pensar. Uso pensar no sentido de rever e questionar julgamentos que, de tão assentados, parecem pedras. Tenho apontado nesta coluna que, com mais frequência, o ser humano tem conseguido mimetizar, em pensamento, muitas situações que estão muito distantes disso. Nos últimos tempos, a política tem sido um espaço privilegiado para essa simulação. E isso porque ela tem dado cobertura racional para as reações mais arraigadas emocionalmente. Conseguíssemos de fato ser racionais e daríamos de ombros para a pilha da política. Nem ligaríamos.

A hipótese que quero desenvolver aqui é a de que, no aprimoramento dessa simulação de racionalidade, nos julgamos em condição de evidenciar o progresso em oposição, é claro, ao atraso ou retrocesso. O melhor dos mundos de uma maioria esmagadora de pessoas, especialmente aquelas que têm o respaldo dos livros que são fotografados – não sabemos se lidos –, é se ver como do lado do bem. Não que pontualmente, e num curto espaço de tempo, não possamos nos colocar a favor ou contra algo, que consideremos desumano, por exemplo. Mas não percebo que essa ressalva faça parte das crenças de que estejamos ou não progredindo. E falo, aqui, de progresso social, nos costumes e na política.

Abri esta coluna com uma citação de Gray exatamente porque ela nos habilita a pensar a ideia de progresso e de como ela é nova entre nós. Povos do passado se julgavam superiores a outros, mas não pelos mesmos motivos que costumam ser elencados pelo Ocidente no contemporâneo. A modernidade se constituiu como um mito que sequer pode ser questionado – ao menos não da maneira com que os textos apologéticos e remetidos às ciências da religião, o são.

O que importa, para os fins desta breve análise, é notar que Gray coloca o conceito de modernidade num relevo histórico, e isso faz com que se perceba que já acreditamos em muitas coisas, julgamos os acontecimentos como dirigidos por deuses, vemos a história como cíclica e que fomos mais politeístas do que somos hoje. Pergunto: quem conseguiria justificar plenamente a sua crença de que tenha havido uma melhoria histórica em relação ao modo como o Ocidente liberal pensa sobre si e o mundo no contemporâneo? A prepotência ocidental aparece e desponta exatamente nessa crença supersticiosa de que temos um único caminho a seguir e de que ele é direto rumo à acumulação de progresso – sendo que, em sua oposição, temos o retorno à idade das trevas.

Pense por um instante que poderíamos estar numa atmosfera de trevas, mesmo que abastecidos por toda sorte de informações. Quais delas escolhemos para dar suporte às orientações que antecipadamente já tínhamos? Em Gray, o progresso, visto como um mito, nos dispõe uma situação de relatividade que tem como fonte a sua leitura do darwinismo.

O que a teoria da seleção natural nos oferece de garantia para que acreditemos que nossos desejos e taras mais difusos possam ser vistos como um sinal de avanço ou retrocesso? E se dependemos de tragédias anteriores para que, no futuro, possamos sentir e viver uma atmosfera de bonança? Interessante supor que, não importa o que façamos, em uma visão ampla, nenhuma de nossas atitudes terá o condão de botar o mundo nos trilhos – mesmo porque não temos a noção de que qualquer de nossas escolhas venha a se sustentar como um dos motivos.

Na teoria da história, esse é o tema da história contrafactual. Quando supomos se algo tivesse acontecido de um modo diferente do que ocorreu. Muitas vezes conhecida por a história do “e se?”, essa orientação tem muito a nos dizer sobre a contingência na história e sobre o fato de que sequer podemos supor o que seria melhor ou pior para a humanidade como um todo. Levando aqui em consideração que o Ocidente continua a desejar realizar a colonização do mundo que não se parece com ele.

Será que quando se tem uma visão de que o progresso seja conduzido por uma concepção de sistema político ou por uma maneira de guiarmos os nossos costumes estamos repetindo o colonialismo?

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.