O Vazio Existencial na Contemporaneidade

Fenômeno do amor – Primeiro Ato: Atitude Sexual na Contemporaneidade

[Leia também: Segundo Ato e Terceiro Ato]


Vive-se uma epidemia silenciosa, o expressivo crescimento de divórcios. Em 2021, foram registrados 80.753 divórcios no Brasil[1], o maior número registrado no país.

Os motivos? Diz-se que, por conta da sua praticidade burocrática, o método de divórcio on-line, oferecido à sociedade civil desde julho de 2020, destinado a casais que buscam o comum acordo e não possuem pendencias judiciais ou filhos menores ou incapazes, tem impulsionado esse número. Ademais, nota-se que a progressão tecnológica – o uso massivo de aplicativos e redes sociais como uma condição necessária para a organização espaço temporal das pessoas –, transpôs a lógica de relação de consumo para a relação amorosa, gerando novas formas de relação conjugal. Um dos maiores desafios da sociedade atual é a manutenção dos relacionamentos. Vive-se em um mundo fragmentado, sem referências, com comportamentos narcisistas e atitudes individualistas, uma sociedade em alta velocidade que afeta negativamente, de forma direta, o cotidiano das pessoas, em especial nas relações conjugais (BAUMAN, 2011).

Pode-se entender que a referência de ‘o que é o amor’ se perdeu, impossibilitando-o de ser vivificado, pois “[…] em nosso mundo de furiosa individualização, os relacionamentos são bênçãos ambíguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e não há como determinar quando um se transforma no outro.” (BAUMAN, 2004, p. 8). Em contrapartida, nota-se o sexo como prática de mero “[…] divertimento, sem a menor referência à relação entre pessoas que se esconde por trás dele, é classificado pela escola psicanalítica como uma ‘regressão’” (FRANKL, 2003, p. 26). Trata-se de um agir sem propósito, sem motivação, sem uma resposta minimamente clara ao “para que?”, o que torna tal atitude vazia, sem finalidade. O curioso é que sejam justamente as pessoas que se consideram mais progressistas as que glorificam uma atitude regressiva… (FRANKL, 2003, p.26).

Diante disso, para apreender o fenômeno do amor, é necessário entender, com base em Frankl (2010, p. 174), que esse fenômeno possui três atitudes de dimensões humanas, sendo: sexual, relacionada à dimensão corporal; atitude erótica, ligada à dimensão psíquica; e a atitude de amor, fundamentada na dimensão espiritual. Assim sendo, ao compreender a esquematização proposta por Viktor Frankl (2010), entende-se que, na contemporaneidade, a atitude do amor está escassa por causa da fragilidade das conjugalidades. A atitude erótica tem sido deturpada a ponto de gerar problemas psicológicos, como: amor patológico, relacionamentos abusivos de ordem psicológica e financeira, violência conjugal e dependência emocional. Sobrou para a atitude sexual o status de relacionamento amoroso hegemônico.

O amor “é um fenômeno especificamente humano” (FRANKL, 2005, p.73), logo, trata-se de um ato existencial.

A vivência da dimensão de amor de forma autêntica, em sua totalidade, significa realizar-se dentro dos seus valores, isto é, apropriar-se de seu caráter único e irrepetível, de forma que o ser humano integre todas as dimensões.

A atitude com a qual uma expressiva parcela da sociedade vivencia o amor, ou seja, a atitude sexual, condiciona o fenômeno amor a uma posição social subumana, um exemplo típico de reducionismo. Por ser a mais primitiva dentre as três atitudes de amor, a atitude sexual se caracteriza por:

da aparência física de uma pessoa emana um atrativo sexual que desencadeia em outra, sexualmente predisposta, o impulso sexual, afetando-a, portanto, na sua corporalidade (FRANKL, 2010, p.174).

Por conseguinte, o fenômeno do amor na contemporaneidade tornou-se ‘um produto’, uma mera mercadoria que está ‘à venda’ por verdadeiras pechinchas, pois possui um prazo de validade após o início de seu consumo. Conforme aponta Bauman (2004):

A promessa de aprender a arte de amar é a oferta (falsa, enganosa, mas que se deseja ardentemente que seja verdadeira) de construir a “experiência amorosa” à semelhança de outras mercadorias, que fascinam e seduzem exibindo todas essas características e prometem desejo sem ansiedade, esforço sem suor e resultados sem esforço. (p. 11)

Dessa forma, a atitude sexual, quando não trabalhada para transcender à atitude de amor, torna-se um engodo para as pessoas. Afinal, preocupa-se em qualquer coisa que o ser amado tem a oferecer, tornando-o um mero objeto, um meio para realizar a própria satisfação imediata e primitiva.

A atitude sexual, por si só, não é suficiente para que o ser humano vivencie o fenômeno do amor. Trata-se de um fragmento do fenômeno do amor, de uma primeira manifestação de amar, de um prelúdio para a atitude erótica.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 2011.

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 2004.

FRANKL, Viktor E. Sede de sentido. 3ª ed. São Paulo, SP: Quadrante, 2003.

______________. Um sentido para a vida: Psicoterapia e Humanismo. 11ª ed. Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2005.

______________. Psicoterapia e sentido da vida. 5ª edição. São Paulo, SP: Quadrante, 2010.

[1] GRANDCHAMP, Leonardo. Divórcios no Brasil atingem recorde com 80.573 atos no ano de 2021. Rede Jornal Contábil. 25 abr 2022. Disponível em: <https://www.jornalcontabil.com.br/divorcios-no-brasil-atingem-recorde-com-80-573-atos-no-ano-de-2021/#.YnQ_2NrMLcc&gt;

Imagem: A Vitória de Eros (Angelica Kauffmann/1750 – Metropolitan Museum of Art)

Sobre o autor

Kalmy Vieira

Graduado em psicologia e marketing, MBA em administração e marketing e pesquisador do grupo “O vazio existencial na contemporaneidade e as possibilidades de realizar sentido” do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.