O Vazio Existencial na Contemporaneidade

Fenômeno do amor – Segundo Ato: Atitude Erótica na ótica da Psicologia Profunda

[Leia também: Primeiro Ato e Terceiro Ato]


A atitude erótica é o estágio acima da atitude sexual (vide Primeiro Ato). Diante disso, o desejo sexual ou a mera excitação já não são suficientes para o ser humano nessa atitude. Aqui, comumente fala-se em “paixão”, pois não são apenas os instintos que estão conectados entre o casal. Há também uma excitação que ultrapassa a própria corporalidade e, assim, comove as qualidades anímicas dos enamorados. “O namorado, portanto, já não está excitado na sua própria corporalidade, mas sim comovido na sua emocionalidade anímica” (FRANKL, 2010, p. 175). Em termos psicanalíticos, trata-se de transferências/projeções entre os parceiros a tal ponto que uma névoa paira sobre as vistas, tornando difuso o fenômeno do amor para o casal.

Ambas as atitudes, sexual e erótica, estão imbricadas em “ter” algo de seu par – seja um traço corporal ou psíquico. Automaticamente, tal atitude é dotada de um certo materialismo, pois, tanto nessa atitude quanto na atitude anterior, o fenômeno do amor visa um apropriar-se de seu parceiro, isto é, uma “atitude de quem toma o objeto do seu amor como propriedade sua” (FRANKL, 2010, p. 195).

Tal atitude, a erótica, pode ser observada através da Teoria da Inveja de Melanie Klein (SEGAL, 1975), da concepção de perversão na psicanálise (LACAN, 2008; FREUD, 2010) e da perspectiva de Carl G. Jung sobre Eros (JUNG, 2013).

Esse estado de paixão é caldeirão perfeito para a teoria da inveja (SEGAL, 1975). O período de paixão entre o casal é maravilhoso pelas descobertas e formação de vínculos afetivos, mas também possui aguda ambivalência com muitas incertezas em torno dos envolvidos. A identificação e rivalidade entre o casal se torna uma marca registrada na relação. Há uma indução de frágeis promessas de amor com sortidos ataques entre os parceiros, acarretando a anulação das capacidades, recursos e criatividade de um ou de ambos: A fase da paixão se apresenta com tons de inveja – sentimento de ódio contra a pessoa amada por esta supostamente possuir uma qualidade desejada pelo amante; Lampejos de ciúmes – o amador buscando suprimir toda a vida social e psíquica da pessoa amada por medo de perdê-la para outrem; Toques de voracidade – o amador extraindo da pessoa amada tudo que ela possui, pode ou não quer dar; Cenas de frustração – o amador, imerso em suas fantasias, pouco ou nada enxerga do mundo real, o que torna suas fantasias agressivas e o deixa incapacitado de amar a pessoa amada.

De forma sintética, a perversão na relação dos enamorados é um meio de demonstrar “recusa”, falta de interesse no corpo do outro – normalmente, um elemento que não desperta tanto interesse em um dos parceiros ou em ambos e que se situa nas genitais. Com isso, os comportamentos perversos surgem através do ato simbólico (LACAN, 2008). Tal atitude pode ser um fetichismo atribuído a outras partes do corpo do(a) parceiro(a) ou ao uso de objetos que, de alguma forma, possam ativar o estado anímico do companheiro fetichista – ou pelo menos simular tal sensação. Para Freud (2010), trata-se de um estímulo instintual necessário para satisfazer uma demanda interior. Outra demonstração de perversão entre casais que ultrapassa a sua corporalidade é a relação de pares de opostos: sadismo-masoquismo e exibicionismo-voyerismo. Os quatro buscam a mesma meta – obtenção de prazer fisiológico e psíquico –, através de um objeto (o seu par oposto). Segundo Freud (2010), todo par sádico ou exibicionista usa o outro para alcançar a satisfação psíquica-fisiológica, o que acarreta uma “reversão da atividade em passividade e pela volta contra a própria pessoa” (p. 50). Jogos eróticos são excelentes formas de “apimentar” a relação. Todavia, isso não significa serem favoráveis ou contrários ao fenômeno do amor.

A teoria de Eros de Jung (2013) trata de refutar a concepção freudiana do erotismo como única e exclusiva forma de apreender a atitude sexual dos seres humanos, e que possui formas deturpadas das relações. Que ela tem formas de subverter as relações, especialmente as afetivas, isso é fato. Contudo, concebê-la unilateralmente por esse aspecto é, no mínimo, ingenuidade. Segundo Jung (2013), Eros é relacionamento e, como tal, faz parte de um paradigma humano:

Por um lado, pertence à natureza primitiva e animal do homem e existirá enquanto o homem tiver um corpo animal. Por outro lado, está ligado às mais altas formas do espírito. Só floresce quando espírito e instinto estão em perfeita harmonia (JUNG, 2013, p. 39)

Pode-se inferir a hipótese de que Frankl e Jung compactuem do mesmo princípio norteador: de que a atitude erótica é um ato que busca o equilíbrio entre corpo e psíquico. O amor precisa da realidade instintual e vice-versa. Existe a falácia, de um lado, de que “o sexo é para perpetuar a espécie” e, de outro, de que “está no mundo para experimentar todas as possibilidades”.

Tolo aquele que não se vincula para além de seus instintos, e ingênuo aquele que acredita estar conectado todo o seu espírito àquela penetração que faz ou recebe. “Tal reducionismo de perspectivas de valor, tamanha ofuscação frente a possibilidades outras que dão sentido à existência humana, em suma. Tal obscurecimento ou carência de capacidade de enxergar levaria direto ao desespero” (FRANKL, 2010, p. 79).

Enfim, cegar-se em prol dos valores impostos pela sociedade pode ofuscar o que realmente importa: a capacidade de amar. Frankl (2010) salienta que somente o amadurecimento dos instintos pode corroborar a capacidade de amar. Logo, subordinar os instintos, aprender a reconhecê-los quando eles se manifestam – sejam para as benesses ou para as mazelas de dentro da relação – é o meio de se entender o outro além de mim.

Somente um Eu que entende um Tu é capaz de integrar um Id (FRANKL, 2010, p. 80).

A atitude erótica precisa desse aspecto: reconhecer desejos, vontades, ímpetos e a falta de freios morais e éticos que o parceiro tem para haver um processo de personalização a partir do centro do indivíduo. Cada parceiro pode, com isso, realizar os anseios de amor sem se deixar abalar pelos fracassos que o processo integrativo impõe.

Essa atitude quase nunca é ultrapassada. Requer diligência para não usar o outro como objeto apenas, humildade para identificar o que é seu e o que é da cousa amada e, mais do que isso, coragem para suportar todos os obstáculos que se apresentaram até ali. Caso isso viesse a ocorrer, poder-se-ia dizer que tal sujeito está no rumo para amar além das características físicas ou psíquicas, pois esse indivíduo alcançou a atitude de amor.

Referências Bibliográficas

FRANKL, Viktor E. Sede de sentido. 3ª ed. São Paulo, SP: Quadrante, 2003.

______________. Um sentido para a vida: Psicoterapia e Humanismo. 11ª ed. Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2005.

______________. Psicoterapia e sentido da vida. 5ª edição. São Paulo, SP: Quadrante, 2010.

FREUD, Sigmund. Os instintos e seus destinos (1915). In: FREUD, Sigmund. Obras Completas Volume 12. Introdução ao narcisismo, Ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Tradução Paulo César De Souza. Edição digital. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2010.

JUNG, Carl Gustav. Teoria do Eros. In: JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente / C.G. Jung. Obra Completa 7/1. Tradução de Maria Luiza Appy. Edição digital. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 16 – De um Outro ao outro 1968-1969. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor, 2008.

SEGAL, Hanna. Introdução à obra de Melanie Klein. Tradução Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro, RJ: Imago Editora, 1975.

Imagem: A Vitória de Eros (Angelica Kauffmann/1750 – Metropolitan Museum of Art)

Sobre o autor

Kalmy Vieira

Graduado em psicologia e marketing, MBA em administração e marketing e pesquisador do grupo “O vazio existencial na contemporaneidade e as possibilidades de realizar sentido” do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.