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Raízes woodstockeanas do sentimentalismo contemporâneo

Desnecessário apontar aqui que existe uma metafísica produzida nos Estados Unidos que ganhou ares de referência e que é fornecedora de sentido e direção para grande parte do mundo. É claro que nem todos os lugares do planeta seguem essa métrica, e sabemos bem disso, uma vez que tais nações ou seus povos são julgados de um modo bastante rígido por não terem os hábitos e costumes dispostos pelos Estados Unidos naquilo que massivamente nos chega, i.e., os produtos de sua indústria cultural, suas, músicas, filmes, séries, ideias, comportamentos e atitudes.

O que desperta a atração por todos esses aspectos pode bem ser a nossa tentação pela permanência na infância, sendo mimados por uma série estímulos que hoje se personificam nos gadgets high tech. O infantilismo pode também ser notado pela ampla produção de narrativas que envolvam os heróis criados pelos grandes trustes do audiovisual. Notamos, então, que o conceito de entretenimento ganhou novos contornos e tende a equalizar diferentes gerações no sentimento de orgulho nerd – tipo de manifestação que se vale de um ressentimento em relação ao constrangimento não assumido de que esse gênero de produção é de fato pueril. Alguma impressão deve se manifestar, o que transparece um certo mal-estar ou mesmo uma quase convicção de que essas narrativas são bobas. Por isso, a contínua reafirmação se faz necessária, de forma massiva e constante.

Sim, podemos fazer eventos ou críticas que justifiquem os traços mais densos ou trágicos dessas narrativas, mas somente com muita autoindulgência poderíamos esquecer dos clássicos originais que apresentaram as matrizes difusas dessas elaborações. Baseio minha afirmação no entendimento de que tais produções articulam uma máquina sofisticada de estímulos que passam pelo áudio, pelas cenas jump scares, mas, acima de tudo, pelos elementos mais piegas que podem arrebatar uma pessoa desavisada. Tomar tais produções como ofertantes de profundidade, de disposição de vieses humanos densos ou que se remetam à condição trágica é um testemunho da mais completa ignorância da literatura já realizado.

A superação, a redenção, a vitória, a resignação com o fracasso, as narrativas que terminam com minorias que recuperam ou fazem nascer o seu orgulho, as histórias que articulam elementos estéticos somente para fazer chorar, a combinação de aspectos que são mapeados pelo marketing e que variam de acordo com o tempo (ainda que conceitualmente sejam os mesmos de sempre), a perda de constrangimento em investir em narrativas surradas – cada um desses temas, ou mais de um deles ao mesmo tempo, se configura em histórias que agradam ao público dos Estados Unidos – talvez seja um tipo de entretenimento que se traduz em suporte para o enfrentamento das neuroses e atropelos do contemporâneo. Tudo isso ainda que se leve em consideração que os Estados Unidos passam uma imagem de país provinciano, com uma dificuldade incomum de produzir mediações conceituais ou genéricas, especialmente quando se voltam para fora.

De fato, notamos na história norte-americana uma grande dificuldade de olhar para o exterior. Os séculos XIX e XX nos dispuseram situações em que essa dificuldade é constatada, seja na Guerra de Secessão, na Primeira ou na Segunda Guerra Mundial. Mas atentemos aqui para aquele que foi um marco para as famílias dos Estados Unidos: a participação do país na Guerra do Vietnam.

A entrada no conflito revelou o mais profundo desconhecimento geográfico ou cultural em relação ao sudeste asiático. As alterações futuras em relação ao alistamento militar obrigatório, dentre outras, foram indicativas do modo pelo qual a opinião pública reagiu à chegada dos corpos dos soldados norte-americanos. Parece-nos, então, que a presença desses ingredientes que apelam para o sentimentalismo guarda proximidade com as dores sofridas pelas famílias norte-americanas, além de refletirem seus medos e pesadelos.

Tomemos agora outro evento consagrado pela mídia e que entendemos ser uma das outras fontes do sentimentalismo norte-americano de origem: sugiro aqui que se experimente pensar o festival de Woodstock dentro desse contexto, e isso porque ele se entrelaça com alguns dos confrontos e choques apresentados acima. Notemos, ainda, que muitas das músicas possuem uma sonoridade próxima do gospel, de ascendência religiosa e que o festival foi bastante comportado em termos de confrontos que não ocorreram, inclusive contra os policiais. Será então que a aceitação futura das drogas – recreativas, como foram chamadas posteriormente –, bem como a ampliação das liberdades do ponto de vista sexual e a reconfiguração das relações familiares, tudo isso, enfim, não guarda proximidade com a assimilação daquelas manifestações como meio de conservar a família unida e voltada somente para si mesma?

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.