“Se nos bloqueassem deveras, a penúria nos levaria à antropofagia.”
João Capistrano de Abreu
Da lista dos sete pecados capitais, há um que parece se ligar bastante bem ao cotidiano das pessoas mais abastadas no Ocidente contemporâneo. Estou aqui me referindo à acídia. Um tédio que se apodera da alma e se estabelece como um páthos consistente, de tal forma que nos iludimos de termos encontrado algo que nos ocupe e nos preencha. Só que não. Logo essa sensação se esvai, procuramos outra coisa para colocar em seu lugar e assim sucessivamente e mais um pouco ainda. Alguns de nós podem ser persistentes o bastante para perseverar nessa busca incessante, mas outros, quem sabe, podem perceber a falácia desse moto-contínuo e se desesperar: e se me dou conta de que nada vai conseguir me entreter e de que o tédio é a minha única certeza?
Visto através desse prisma, o que fazemos ou deixamos de fazer, o que se escolhe e tudo aquilo a que se renuncia deixam de ser atitudes dotadas de consistência em si mesmas – são sujeitas e remetidas a um outro objetivo que é o de nos ocupar, de nos entreter ou de conseguir nos tirar do tédio que se apodera de nós.
Difícil pensar dessa maneira? Creio que sim, mesmo porque costumamos idealizar as nossas posições e, no mais das vezes, divulgamos o que entendemos serem as nossas melhores qualidades, inclusive quando fingimos abrir o jogo e confessarmos nossas mesquinharias. Até aqui, nada que La Rochefoucauld ou Maquiavel não soubessem, muito pelo contrário.
No entanto, os contextos históricos mudam e somos uma espécie muito facilmente seduzida pela tecnologia, seja ela qual for. Mas aqui, especialmente, eu penso no digital, na internet, nos smartphones, nas redes sociais e nos grupos que são formados no WhatsApp, Telegram ou Instagram. E penso nesses exemplos por perceber que as alterações profundas que eles promovem unem um público mais amplo. Além disso, se encontram na necessidade de exibição pública, seja ela movida por entretenimento ou pela sobrevivência nas frentes de trabalho.
Nem um pouco difícil notar que, nas redes sociais, todos nós exibimos o nosso melhor lado e desejamos engajamento com quem quer que seja que queiramos que esteja ao nosso lado – ou então desejamos ser reconhecidos por isso. Assim, não ambicionamos falar a verdade nas redes – isso não vem ao caso –, uma vez que esse não é o foco e sim o que devemos fazer para ganhar atenção. Os grupos de trabalho demonstram com facilidade esse estado de coisas. Por exemplo, se sabemos que há um chefe no grupo, nossa atuação será balizada por esse fato. Iríamos no indispor com quem contrata ou demite? Se esse chefe defende um lado ou outro do espectro político, sequer entraremos no assunto. Passaremos batido por muitos comentários que teriam o dom de alterar o nosso humor para pior. Mas a política, como venho apontando, não é o foco. Se ela fosse, falaríamos dela com mais distanciamento e sem fingirmos indignação. Preocupamo-nos de fato com os outros ou a nossa principal preocupação é demonstrar que estamos preocupados? A segunda alternativa produz mais engajamento.
O “parecermos bonzinhos” do título desta coluna vem articulado com uma série de percepções. Vamos aqui enumerar algumas, todas supondo um grupo com cerca de 30 pessoas, com curso superior completo, além de mestrado, doutorado ou pós-doc: parecer cult citando filmes que acabou de assistir, no cinema, e dando uma síntese do que seria uma crítica referenciada – mas esses filmes têm que ter apelo social, passando por temas identitários, recuperando o que se julgou ter sido um personagem “adiante de seu tempo”, mas relegado e esquecido por conta de patriarcalismo, sexismo, racismo ou etarismo (este caso menos importante e significativo por não ter apelo jovem); evitar falar de livros, sob o risco de provocar inveja ou cizânia, principalmente num grupo cujo chefe leia pouco – mas se quiser mesmo assim, é bom se escorar num livro que repita as características citadas em relação aos filmes; se optar por colocar alguma foto de comida, escolher sempre as veganas, isto porque quem come carne não correrá o risco de se indispor e quem for vegano poderá se manifestar com palminhas – se o chefe for vegano, se torna obrigatório postar essas imagens ou, então, ainda que você tenha acabado de comer uma picanha, colocar as palminhas; se o seu chefe permitir, use pronomes neutros à vontade.
Fora desse padrão, se no grupo o chefe demonstrar pouca sensibilidade para as questões levantadas acima, manifeste-se somente em relação ao trabalho, isto é, confirme horários ou a sua presença em reuniões e deseje feliz aniversário se alguém do grupo iniciar o movimento, principalmente se for o chefe. No mais, as palminhas seguem sendo sempre recomendadas.
Os aspectos levantados acima foram inspirados por um livro, “How Statesmen Think: The Psycology of International Politcs”, de Robert Jervis (Princeton/New Jersey: Princeton University Press, 2017), do qual falaremos em outras colunas.
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447
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