A expressão ‘capitalismo flexível’ descreve hoje um sistema que é mais que uma variação sobre um velho tema. Enfatiza-se a flexibilidade. Atacam-se as formas rígidas de burocracia, e também os males da rotina cega. Pede-se aos trabalhadores que sejam ágeis, estejam abertos a mudanças a curto prazo, assumam riscos continuamente, dependam cada vez menos de leis e procedimentos formais. Richard Sennett. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2003.
Não se trata exatamente de um mistério. Não, nem um pouco. Somos uma espécie bastante estimulada pela tecnologia. Nem precisamos ir até Neil Postman (1931-2003) – muito embora seja um grande prazer – para constatarmos esse fato. Poderíamos ir longe, rumo ao passado, e passarmos em revista o nosso maravilhamento com instrumentos ou ferramentas que causavam frisson, como nos contos de J. L. Borges ou nas histórias de fascínio de imperadores asiáticos em relação às traquitanas.
Mas é claro que a tecnologia se não mostrou tão sedutora desde sempre. O mito de Thot, disposto no Fedro de Platão, apresenta uma situação em que o rei se recusa a aceitar a escrita – entendida aqui como uma ferramenta – por perceber que não nos esforçaríamos mais para guardar na nossa memória o que conhecemos e aprendemos e nos tornaríamos preguiçosos. Muito citado também é o movimento Ludita, que, na Inglaterra do século XVIII, partiu para a destruição das máquinas empregadas na produção fabril em protesto contra as más condições de trabalho.
Contudo, o momento histórico mais mencionado em relação à excitação provocada pelas descobertas tecnológicas foi o da segunda Revolução Industrial – chamada pelo historiador Nicolau Sevcenko (1952-2014) de Revolução Técnico-Científica –, lá pelos fins do século XIX. É sempre bom recuperar esse contexto, uma vez que ali nos confrontamos tanto com o traço sedutor e estimulante quanto com a ansiedade e o medo provocado pelo aparecimento de tantas engenhocas, ferramentas ou procedimentos que foram incorporados ao cotidiano de uma maneira compulsória.
Acho significativo abordar o medo aqui, inclusive porque o século XXI tem apresentado uma situação inusitada em relação aos estímulos provocados pela tecnologia – pensando em dispositivos, programas ou serviços. Notamos uma aderência às novas descobertas, sendo que os aspectos mais tensos servem como suporte para os roteiros das requentadas narrativas distópicas que nos são apresentadas.
Por que aderimos às modas tecnológicas de uma maneira tão dedicada, quase lúdica e infantil?
Porque dependemos delas para a mantermos os nossos empregos. Experiência arcaica que alguns poucos de nós temos, essa de ter um emprego a prazo fixo, com um fóssil chamado carteira de trabalho, garantias de férias e décimo terceiro, além de aposentadoria. Nesse caso expresso, emulamos o que quer que chegue a nós, de preferência com um nome em inglês que soe como um conceito que, pasme, depende do seu conhecimento para ser explicado. Funciona muito bem falar em nativos ou imigrantes digitais.
Porque nos mostramos para os outros e podemos exibir o modo como estamos antenados com as últimas tendências. Sim, vive-se uma atmosfera de truco, claramente identificada quando alguém fala de um último lançamento para outra pessoa que não o conhecia, mas que vai mentir, dizer que já trabalhou com essa tecnologia e vai apresentar uma outra a seguir. Tudo isso pode ir muito longe no bate e rebate.
Porque, na falta de uma reflexão minimamente profunda, pode nos parecer que o presente seja melhor que o passado e que o futuro será ainda melhor. Aqui um clichê bem conhecido e que opõe os supostos avanços do presente em relação ao obscuro passado. Expressões que entram nessa consideração são: “nem na idade média”, “uma pessoa à frente do seu tempo” e “como pode isso acontecer em pleno século XXI”.
Por escondermos a nossa insegurança atávica, pronunciando algumas expressões em inglês. Um grande marcador que trai o nosso provincianismo é esse em que nos servimos à vontade de palavras em inglês que mimetizam conceitos. Francês não, pois costuma provocar vergonha – aqui o ato falho que revela insegurança e provincianismo – pelo uso de uma pronúncia mais específica. E o inglês é terra de ninguém mesmo. Caso grave esse, uma vez que adotamos uma segunda língua, especificamente em sua vertente norte-americana, que foi concebida para o uso de adultos infantilizados. As expressões substantivadas comprovam isso.
Porque as big techs têm amplo poder de divulgação e o que elas criam vira moda em segundos. Elas ganham dinheiro a rodo com isso, e quem adere – mediadores, articulistas e professores – faz parte dessa economia de subsistência atuando como um garoto propaganda. De longe, a melhor resposta.
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447
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