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Storytelling de bancos e de Big Techs mentem para você o tempo todo: o objetivo é aumentar os lucros e cuspir você o mais rápido possível

Estranhos os caminhos e percursos que nos conduzem à empatia com a justiça social, com as questões que passam por desigualdade de gênero ou por acolhimento da diversidade racial. Tudo isso além de outras pautas que são acessórias: a história decolonial, o uso dos pronomes neutros ou as transformações quanto aos modos de se nomear os coletivos de pessoas, que historicamente têm variado de acordo com critérios de enfrentamento, de luta ou de conscientização. Ainda que muitas dessas alterações se deem num âmbito bem circunscrito, elas conseguem alcançar repercussão, especialmente através do braço mais incisivo do marketing composto pela publicidade ou produção de conteúdo que nos chega por meio do audiovisual. Com o tempo e logo não conseguiremos mais identificar a distinção entre um e outro: publicidade e filmes ou séries são separadas por duas casinhas no tabuleiro.

Diz-se, de uma maneira muito pouco ortodoxa, que a ideologia trabalha a serviço do encobrimento das mazelas impostas pela infraestrutura capitalista – e a superestrutura é a parte visível desse velamento. Nela, a felicidade se apresenta como a principal commodity, que se transfigura em bens materiais ou abstratos. Do ponto de vista histórico, os produtores de conteúdo audiovisual fazem a festa quando se propõem a recuperar uma época passada. Tal retomada se dá pela incorporação do figurino, da trilha sonora e, quase sempre, um mínimo de dedicação ao pensamento que se forjou no período passado retratado. Para facilitar o acesso da audiência, muitas dessas narrativas inserem uma personagem do século XXI num contexto que pode ser medieval, pré-histórico ou colonial. Quase ninguém se importa com isso e sequer haveria espaço para uma crítica nesses moldes: filmes são aquilo que assistimos antes da pizza, mesmo que, em algumas rodas, pegue bem passar a ideia de que você respeita a cultura e tem sensibilidade para com ela.

Filmes como Wanda Vision recuperam parte desse imaginário de época, uma vez que a proposta é a retomada da vida do casal através do reflexo da realidade que eram e são as séries no estilo Sitcom. Do ponto de vista ideológico, é com interesse que acompanhamos os hábitos constantes das relações sociais representadas pelos personagens da série. Da mesma forma, poderíamos nos remeter ao que trazia tensão para o seu cotidiano, o que os afligia ou não, bem como aos seus costumes remetidos ao lazer. De maneira semelhante, fosse outro o recorte da produção e nos depararíamos com situações que, para os olhos severos do século XXI, revelariam a naturalização da violência de gênero ou o preconceito racial.

Esse tipo de visada nos interessa aqui, não tanto pelo aspecto histórico propriamente dito, mas muito mais pela oferta desse conteúdo que se pretende oferecer aos espectadores. É frequente a manifestação de que melhoramos em relação ao passado e superamos, dentre outras coisas, a publicidade misógina ou sexista – ou, então, que conseguimos alcançar a consciência em relação aos terríveis males provocados pelo preconceito racial.

Creio que esse tipo de exercício alcance os seus objetivos, dado que, nesse processo catártico, nos sentimos num mundo melhor em comparação ao que já passou. Séries como Mad Man oferecem essa perspectiva. Podemos nos sentir melhor, uma vez que aquela ambientação no contexto da produção publicitária das décadas de 50 e 60 não existe mais. Esse sendo o ponto em que desejo permanecer agora: a sensação de que houve humanização do capitalismo, de que ele hoje incorporou a causa da justiça social, que leva em consideração a exploração do trabalho negro, asiático ou feminino. É por esse viés que podemos até nos emocionar com campanhas que abraçam causas.

Só que não.

Não existem limites para a produção de ideologia ou para a fantasmagoria destinadas a velar o que de fato ocorre. Não, as Big Techs não estão preocupadas com a justiça de gênero ou raça: elas estão devotadas ao que mais possa ampliar os seus lucros. Não, os bancos não estão sensibilizados pela carência educacional em nosso país: eles estão preocupados em auferir ainda melhores resultados que no ano anterior. Não, as campanhas de cosméticos ou perfumes não estão nem aí com a valorização de corpos que não sejam brancos e padronizados: eles querem grana, faturamento e espaço no mercado. E tudo isso com folhas de pagamento o mais enxutas possível: trabalho análogo à escravidão, no Brasil, equivale a vestir a camisa da empresa. E, se a mão de obra é barata, ela topa qualquer tipo de ocupação.

Pense nisso, quem sabe, na próxima vez que você se emocionar com uma campanha publicitária de vinho ou guloseimas açucaradas. E, não, as práticas capitalistas não se sujeitam às crendices do mais aplicado kantiano, sendo que ele próprio ou é um trouxa alienado ou faz parte do negócio e ganha dinheiro, mesmo que pouco, com a economia das causas sociais.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.