Behavior

O comportamento burguês na era do ChatGPT: o desejo de exibir os boletos pagos

Pode até ser que o conceito de estrutura faça algum sentido, apesar de eu achar que se trata de um facilitador de pensamento cujo objetivo é blindar a opinião de um grupo. Sendo um conceito político, ele carrega intenções ideológicas, o que ajuda a confundir o seu uso. Sempre lembramos de Popper, quando diz que se uma hipótese não pode ser verificada estamos nos referindo a um dogma, como numa religião.

Conceitos, expressões, gírias ou pronomes semelhantes são criados em profusão nos países ricos. A maioria deles, quando conectados a uma causa social, diz respeito às situações específicas dessas nações. Assim, há uma comunidade negra influente nos Estados Unidos, ou mesmo grupos identitários ligados às minorias do Oriente Médio nos países da Europa. Essas culturas possuem sua própria história em cada um dos países em que se encontram. E elas criam suas alternativas para o confronto específico e pontual.

Some-se a isso o fato de que, para facilitar a assimilação, todas essas demandas viram trends assim que são percebidas, ainda nos círculos mais restritos, pelo marketing do comportamento. E, então, viram matéria prima da publicidade e da indústria do audiovisual. A partir desse momento, o que parecia subjetivo se manifesta em expressões ou gestos que são consubstanciados com a ajuda de sons e imagens: tornam-se clipes. É bom que nos lembremos disso, especialmente quando nos emocionamos com uma campanha publicitária de marcas esportivas ou de política, propriamente dita.

Somente após tudo isso, esses temas chegam aos países pobres, assim como no passado, quando poderíamos importar até esquis para neve. Diga-se que o mundo globalizado – outra expressão frágil – detém o domínio da curadoria dos temas e assuntos que se tornam hegemônicos. Não há nada capaz de alterar esse quadro, mesmo que peguemos o último lugar da fila. Essas modas não foram criadas pensando na nossa realidade, mas ambicionamos nos assemelhar ao Primeiro Mundo. Consumimos com avidez essas modas que preenchem o tédio infinito de algumas pessoas.

Não são exatamente todos que se ligam nisso e que se orientam por essas tendências. Em geral, quem está na lida mais agressiva pela sobrevivência não tem tempo a perder. No entanto, essas modas encontram respaldo nas camadas mais ricas e, em especial, junto àqueles que transitam pelas áreas de cultura e entretenimento. É ali que o que vem de fora pega. A faixa etária de predileção é a que se encontra entre os 18 e 60 e poucos anos de idade, sendo que nessa última já se pode notar uma nota de hipocrisia e total ausência de senso de ridículo.

Gostar de registrar selfies em lugares conhecidos o suficiente para serem notados pelos participantes da sua bolha, ou mostrar os restaurantes em que se esteve, são marcadores de comportamento que demonstram o seu lugar no mundo. Aparentar atino na escolha das causas que se defende também.

A classe média escolarizada é a presa mais fácil dessas ondas, uma vez que ela tem para si a responsabilidade de representar um papel para os outros. Sempre é bom recuperar que a mentalidade burguesa encontrou seu melhor abrigo nessa classe social. Não se trata somente de ter condições econômicas, mas sim de possuir uma cosmologia. E nela entra tudo aquilo que, de modo calculado, venha a causar uma boa repercussão entre os pares. O desejo de exibir-se e mostrar o seu melhor lado em público está presente no senso de pertencimento a esse grupo: Albert Camus (1913-1960), em A Peste, e Michael Oakeshott (1901-1990), na “Torre de Babel”, já tinham percebido esse estado de espírito.

Por esse motivo, em épocas mais difíceis, em que as modas se tornam mais hegemônicas, a classe média tem mais facilidade em aderir aos novos códigos morais ou de comportamento – o que pode variar da esquerda para a direita, mas com grande aversão ao centro: não há emoção aí e nem muito o que se exibir. Quem é adepto da crença na novidade não suporta permanecer por muito tempo entre polos opostos.

Mas voltemos às expressões que vêm de fora e ao modo como se adere a elas sem critério. Procure notar o tempo que essas modas duram e o nível de comprometimento das pessoas que as abraçam. Não há nada de mais forte ou coeso que esteja presente nessa aproximação. É claro que se pode notar um fio condutor, e que pode estar em conexão com o desejo de agradar ou de ser aceito.

É exatamente por isso que, no Brasil, quem tem o privilégio de falar sobre os mais pobres (e até de ditar regras e normas para eles seguirem), são aqueles que estão numa situação melhor. Mas não se chega a sentir um compromisso assim tão forte com essa defesa, uma vez que ela parece postiça e pronta para as redes sociais, e não exatamente voltada para a prática da filantropia. A exibição de si próprio a partir da defesa explícita de causas é um comportamento que descende em linha direta do moralismo burguês do século XIX. Abordaremos esse tema em uma próxima coluna, partindo das pesquisas realizadas pelo historiador Peter Gay (1923-2015) sobre a sociedade vitoriana.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.