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A vaidade se revela na recuperação dos tempos passados

Em Raízes do Romantismo (São Paulo: Três Estrelas, 2015), Isaiah Berlin posiciona o romantismo como uma tomada de posição original que não seria possível em outro momento passado da história. Tratou-se, então, de uma consciência de si próprio, e que agregava a história pessoal, as possibilidades de criação de caminhos distintos, ou da sensação de não se poder jamais vir a exercer a liberdade. O romantismo não nos interessa particularmente aqui, mas sim a percepção da impossibilidade de termos uma reflexão, como dizem os franceses, avant la lettre, ou seja, algo que alguém tenha escrito cinco séculos atrás e que venha a se mostrar uma profecia. O que de fato ocorre é que o tempo presente recupera ou descarta o que lhe convém em relação ao passado. A crença de que alguém esteja adiante de seu tempo somente é possível quando o conhecimento é tomado pelo marketing.

Não seria possível a um habitante de Roma antiga, da Idade Média ou do período indígena nas Américas experimentar a abordagem romântica, assim como ela foi sentida nos inícios do século XIX. Temos dificuldade de fazer essas suposições, uma vez que portamos as nossas ideias e cremos em nossos pontos de vista como se eles fossem a referência para o julgamento de tudo o que veio antes de nós – assim como em relação ao que desejamos e julgamos conveniente que continue a acontecer no futuro, em uma escalada que implica expectativa, regozijo e frustração.

Essa tensão se manifesta no anacronismo, na identificação de temas que não pertencem a uma época passada, mas que são dispostos ali a partir de uma narrativa feita num presente, muito distante desse momento pretérito. Podemos nos perguntar por que fazemos isso, apontando algo que não poderia ser pensado em uma conjuntura de uma época distante daquela em que vivemos. Pode ser que isso aconteça pelo anseio de facilitação da compreensão do passado. A transposição dos dilemas do presente para uma época remota pode engajar o público, que é exatamente o que os produtos narrativos de entretenimento ambicionam fazer.

Mas a pasmaceira contemporânea somada ao desejo de embevecimento constante de si próprio transparece outros sinais e eles têm a ver com origem. Não qualquer uma, mas aquela que possa ratificar o que se pensa no presente. Diga-se que as coisas nem sempre se processam assim. Temas do contemporâneo podem habilitar a descoberta de novos objetos do passado, e que se configuram em motivo de pesquisa. No documentário Arquitetura da destruição, dirigido por Peter Cohen, e lançado em 1989, as concepções nazistas que passavam pelo entendimento de beleza, de pureza racial e genética propiciaram a retomada da Kalokagathia, mesmo que, evidentemente, Platão não tivesse nada a ver com isso.

No entanto, o anacronismo se destaca quando se é introduzido na dinâmica de um passado específico, um tema ou problema que lhe são estranhos. Faz-se isso na história quando se pretende traçar um fio condutor capaz de unir tempos e práticas diversas e variadas. Na prática, essa orientação visa a facilitar o entendimento de uma narrativa, ao passar a falsa noção de que o passado seja facilmente reconhecido por aqueles que estão distantes dele.

Temos então uma situação em que o passado se torna filho do presente e dele recebe influências e a própria direção. A história se torna presa do presente, que age sobre ela fornecendo as diretrizes e as características, inclusive as mais específicas. Essa dimensão pode ser percebida em Antoine Prost, no seu Doze lições sobre a história (Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2008), quando aponta que:

O tempo moderno é portador de diferenças irreversíveis; ele torna o “depois” irredutível ao “antes”. Trata-se de um tempo fecundo, prenhe de novidade, que nunca se repete e cujos momentos são únicos; ele supõe uma espécie de revolução mental que se faz lentamente. (…) O tempo no qual se move a nossa história é um tempo ascendente; aliás, convidados a utilizar uma reta para representá-lo, os alunos nunca desenham uma linha achatada ou descendente… Apesar dos desmentidos concretos e da ausência de necessidade lógica, permanecemos fiéis ao tempo do progresso, aquele que deve conduzir necessariamente para algo de melhor; para se convencer disso, basta observar o uso dos termos “regressão” ou “marcha à ré” para designar tudo o que desmente essa norma. (pp. 102-103).

A partir do viés de compreensão do passado como conectado ao presente através de uma perspectiva sucessória em que os acontecimentos podem vir a dar lugar ao progresso ou ao retrocesso, a modernidade julgou encontrar um ponto de ancoragem e de referência. É por isso que os temas do passado acabam por ser julgados partindo-se das modas transitórias concebidas no contemporâneo. Nessa visada, os conteúdos que guardem proximidade com o comportamento são aqueles mais suscetíveis de serem descobertos como oriundos de tempos remotos, como se fosse possível ter a consciência das lutas e confrontos que viriam a se configurar séculos depois.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.