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Iremos nos render à inteligência artificial sem qualquer constrangimento

Em um mundo em que as atividades mecânicas são tão solicitadas, qualquer possibilidade de encaminhamento do trabalho através de dispositivos artificiais ganha repercussão e expectativa. Já tive a oportunidade de apontar que, como somos cada vez mais tomados pelos clichês – pronomes e modos de tratamento, preocupação com a escolha correta de artigos definidos etc. –, uma tecnologia que venha a nos livrar de criá-los será bem-vinda. Outro exemplo: nas universidades em que leciono e pesquiso, eu constato que o trabalho insano por ocasião da visita dos avaliadores do MEC poderia ser realizado pela inteligência artificial. E isso para o lamento daquelas pessoas que gostam de se ocupar perseguindo os outros por conta de detalhes, de aspas ou vírgulas burocráticas.

No entanto, engana-se aquele que somente se recolhe ao limite de sua visão julgando tais dispositivos como temerosos para aqueles que se dedicam a alguma área que envolva criação literária ou afins. Tem sido reincidente entre os professores a preocupação com a perspectiva dos alunos não mais se dedicarem à pesquisa e à elaboração de um texto de sua própria lavra. Quando os professores envergam esse papel, eles revelam o seu lado mais mesquinho e apequenado, que é o do vigia que suspeita daqueles que estão sob seu controle. E hipócritas, uma vez que farão exatamente o mesmo se isso se fizer necessário: toda essa conversa sobre o ChatGPT não esconderá o desejo de melhor dominar essa tecnologia para então poder se servir dela na elaboração de textos ou artigos? Lembrando aqui que quem exibe o seu melhor lado pode fazer o impossível para esconder os seus próprios ilícitos. Como diz um amigo, toda virtude é silenciosa.

Seria bom que se buscasse fontes para melhor compreender o que já temos em relação às mais variadas inteligências artificiais ao nosso redor. Para tanto, é preciso que olhemos para um horizonte mais distante e que não envolva somente o campo da literatura ou da reflexão mais típica das humanidades. Esse é o objetivo de The age of AI and our Human Future, de Henry Kissinger, Eric Schmidt e Daniel Huttenlocher (NY: Hachette Book Group, 2021).

O livro apresenta a origem do conceito de IA quando aplicado a uma situação específica. Tratou-se de um experimento realizado em 2017, quando uma IA desenvolvida pelo Google DeepMind derrotou o mais poderoso programa de xadrez até então conhecido. Nomeada de AlphaZero, a IA foi abastecida da experiência de jogos e estratégias, mas não possuía jogadas pré-programadas. O sistema buscava as melhores opções com a finalidade de vencer a partida, o que implicava táticas arrojadas e exatamente não praticadas de modo costumeiro, como por exemplo sacrificar peças importantes como a rainha. De acordo com os autores:

AlphaZero não tinha uma estratégia no sentido humano (embora seu estilo tenha levado a um estudo humano mais aprofundado do jogo). Em vez disso, tinha uma lógica própria, informada por sua capacidade de reconhecer padrões de movimentos em vastos conjuntos de possibilidades que as mentes humanas não podem digerir ou empregar totalmente. Em cada estágio do jogo, AlphaZero avaliou o alinhamento das peças à luz do que havia aprendido com os padrões de possibilidades do xadrez e selecionou o movimento que concluiu ter maior probabilidade de levar à vitória. Kissinger, Henry A; Schmidt, Eric; Huttenlocher, Daniel. The Age of AI: And Our Human Future (p. 12). Little, Brown and Company. Edição do Kindle.[1]

Os autores então contam que, após essa experiência, pesquisadores do Massachusetts Institute of Tecnology aplicaram um dispositivo de IA para a pesquisa de um antibiótico que fosse capaz de debelar uma cepa de bactérias resistentes. Ainda de acordo com os autores:

Primeiro, os pesquisadores desenvolveram um “conjunto de treinamento” de duas mil moléculas conhecidas. O conjunto de treinamento codificou dados sobre cada uma, variando de seu peso atômico aos tipos de ligações que contêm e sua capacidade de inibir o crescimento bacteriano. A partir desse conjunto de treinamento, a IA “aprendeu” os atributos das moléculas previstas como antibacterianas. Curiosamente, identificou atributos que não foram especificamente codificados – na verdade, atributos que escaparam da conceitualização ou categorização humana. Quando o treinamento terminou, os pesquisadores instruíram a IA a pesquisar uma biblioteca de 61.000 moléculas, medicamentos aprovados pela FDA e produtos naturais para moléculas que (1) a IA previsse que seriam eficazes como antibióticos, (2) não se parecessem com nenhum antibiótico existente, e (3) a AI previsse não ser tóxico. Das 61.000, uma molécula se encaixa nos critérios. Os pesquisadores o chamaram de halicin – uma referência ao AI HAL no filme 2001: A Space Odyssey. Kissinger, Henry A; Schmidt, Eric; HUTTENLOCHER, Daniel. A era da IA: e nosso futuro humano (pág. 13). Little, Brown and Company. Edição do Kindle.[2]

Parece-me bastante evidente que os usos da IA já estão entre nós, e que se manifestam em campos mais urgentes e delicados do que aqueles ligados à elaboração de textos, dissertações ou trabalhos escolares. No passado, utilizávamos a palavra otimização para nos referirmos aos processos que terminavam por incrementar a produção de qualquer produto ou serviço, sendo que o nome de Frederick Taylor (1856-1915) vem sendo recuperado por esse motivo.

No contemporâneo, as áreas de segurança, de saúde, da produção ou da logística, dentre outras, são bastante permeáveis ao uso da IA. Muito haverá de ser feito, especialmente em relação aos dilemas éticos que estão conosco há um bom tempo. É suposto que os países do primeiro mundo, visando a manutenção de suas economias no nível em que se encontram, venham a debater esses aspectos para conter os custos com processos judiciais. Caberá igualmente ao setor de entretenimento fabular sobre a dimensão distópica de um contexto tomado pela IA. Tais narrativas abasteceriam o imaginário dos consumidores mais vorazes.

O mesmo não se pode aguardar que ocorra nas economias periféricas, tais como a brasileira. No nosso caso, a preservação de um estado de coisas terá mais a ver com o que venha a perpetuar a crueldade, bem como o preço barato que se atribui à vida humana. Pensar a IA apenas na dimensão da escrita de textos nada mais é do que uma grande miopia daqueles que parecem ter a sua vida ganha.

[1] AlphaZero did not have a strategy in a human sense (though its style has prompted further human study of the game). Instead, it had a logic of its own, informed by its ability to recognize patterns of moves across vast sets of possibilities human minds cannot fully digest or employ. At each stage of the game, AlphaZero assessed the alignment of pieces in light of what it had learned from patterns of chess possibilities and selected the move it concluded was most likely to lead to victory

[2] First, researchers developed a “training set” of two thousand known molecules. The training set encoded data about each, ranging from its atomic weight to the types of bonds it contains to its ability to inhibit bacterial growth. From this training set, the AI “learned” the attributes of molecules predicted to be antibacterial. Curiously, it identified attributes that had not specifically been encoded—indeed, attributes that had eluded human conceptualization or categorization. When it was done training, the researchers instructed the AI to survey a library of 61,000 molecules, FDA-approved drugs, and natural products for molecules that (1) the AI predicted would be effective as antibiotics, (2) did not look like any existing antibiotics, and (3) the AI predicted would be nontoxic. Of the 61,000, one molecule fit the criteria. The researchers named it halicin—a nod to the AI HAL in the film 2001: A Space Odyssey.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.