Henry James, na década de 1880, entendia o que dolorosamente aprendemos com o sombrio glossário de guerras e campos de concentração, depois de termos visto a situação e a natureza humana escancaradas à nossa horrorizada inspeção. “Mas tenho o dom de imaginar o desastre – e vejo a vida como feroz e sinistra”, escrevia James em 1896. (…) Foi então essa “imaginação do desastre” que afastou James de seus contemporâneos, e é isso justamente o que o recomenda, para nós. Lionel Trilling, A imaginação liberal: ensaios sobre a relação entre a literatura e sociedade. São Paulo: É Realizações, 2015, p. 91.
Lionel Trilling (1905-1975) foi um dos mais espetaculares críticos literários do século passado. Pertencente à cena intelectual de Nova York da década de 1950, Trilling manteve contato com Gertrude Himmelfarb (1922-2019), Irving Kristol (1920-2009), Leo Strauss (1899-1973) e Michael Oakeshott (1901-1990). Esse grupo de pensadores ganhou o rótulo de neoconservadores, o que sem dúvida concorreu para o afastamento de muitos leitores apressados. Suas contribuições passaram pelo campo da história, da historiografia, da crítica literária, da reflexão sobre a moral e os costumes e sobre a filosofia política. E suas obras têm sido publicadas em português, o que veio a possibilitar o acesso dos brasileiros às suas atentas pesquisas.
Dessa geração, pode-se dizer que viveram os terríveis infortúnios provocados pela Segunda Guerra Mundial, mas não exatamente pelo que ela teve de convencional: a humanidade está em guerras desde sempre. Referimo-nos aqui à chaga do Holocausto e à consciência histórica dessa tragédia.
A experiência do desastre, ofereceu um alto nível de discrição aos intelectuais que viveram no pós-guerra. De fato, o pesado fardo histórico de serem testemunhas da tragédia impôs-lhes uma realidade não suposta por quem anteriormente tenha se encantado com as aspirações kantianas. Esse traço acabou tornando suas reflexões mais sóbrias, ainda que não melancólicas. E se agregamos Albert Camus (1913-1960) – este escrevendo no contexto do pós-guerra europeu – acolhemos os dois conceitos que perpassam a sua obra, o absurdo e a revolta.
A proximidade com o enfrentamento da tragédia – não se supunha o ideal de superação – contribuiu para que os escritos desses autores fossem mais densos, para que tivessem o cinismo como companheiro e, acima de tudo, um ceticismo incomum em relação à história. O sentimento compartilhado, que se tornou uma referência muito citada, é o da frustração com o passado ou da percepção de uma traição propriamente dita. Esse sendo um difícil momento para envergar a responsabilidade da escrita e, portanto, do compartilhamento de ideias e da interpretação dos comportamentos e atitudes.
A configuração do intelectual, forjada a partir da atuação de Emile Zola (1840-1902) perante o caso Dreyfus (1898), não se apresentava como possível: como supor uma narrativa idealista naquele contexto? Recupere-se que os escritores então costumavam se postar do lado da crítica social e engajada, em especial de esquerda. Dessa maneira, possuíam horizontes e expectativas em relação ao futuro, mesmo que o presente não lhes autorizasse a divagar.
A sensação de abandono e de solidão provocou o encaminhamento de outras sínteses ou definições. É importante que se note que esse tipo de estranhamento deu lugar a uma interpretação que testemunhava a suspeita em relação à natureza humana. Nessa circunstância, Henry James (1843-1916) seria aceito e lido com proveito, uma vez que o desastre então se manifestava em cores vivas e chocantes.
É difícil para alguém que tenha vivido apenas os anos do século XXI alcançar a dimensão desse sentimento e dessa tomada de consciência. Mas o mesmo não se pode dizer de quem tenha compartilhado a tragédia no contato com quem a viveu pessoalmente. Quando notamos a empatia infantil em relação aos acontecimentos contemporâneos, apontamos para a busca de uma consciência minimamente trágica que consiga configurar uma reflexão partindo do estranhamento. Ver a vida como feroz e sinistra, longe de nos tornar pessimistas – um sentimento que no contemporâneo recupera o tema da subversão das ditaduras do século passado –, daria corpo e substância às visadas que faríamos em relação ao nosso tempo.
Entendo que poderíamos cultivar aqueles acontecimentos passados que justificaram e deram aval à suspeita em relação à humanidade. Assim, acordarmos e nos compormos, tendo como stand by um pouco que seja dessa suspeita, não nos faria mal algum. Mais do que isso, o respeito ao aspecto incomensurável dos desastres poderia nos aproximar da circunspecção e da manifestação de um comedimento em relação à alegria. Não seria exatamente ruim opor à loquacidade desvairada que se manifesta nas redes sociais um tipo de silêncio respeitoso aos momentos em que sequer soubemos como nos pronunciar ou emitir algum tipo de julgamento. É dessa qualidade de consciência que nos fala Henry James e Lionel Trilling.
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447
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