Escrita nos anos de 1850 e 1851, e somente publicada postumamente por escolha e decisão de seu autor, Alexis de Tocqueville (1805-1859), Lembranças de 1848: as jornadas revolucionárias em Paris (São Paulo: Companhia das Letras, 1991. Novas reedições foram feitas) é uma obra significativa do gênero do memorialismo político. Nela, podemos acompanhar a recuperação dos acontecimentos passados em 1848, um dos vários períodos revolucionários que configuram a história da França. Afastado do teatro político, Tocqueville encontrava na escrita o que ele próprio considerava
um descanso ao meu espírito (…) um espelho no qual me distrairei, olhando meus contemporâneos e a mim, não um quadro destinado ao público (…) Quero compreender e revelar sinceramente os motivos que nos fizeram agir, a eles, a mim e aos outros – e, para que a expressão das palavras seja sincera, é necessário que a obra permaneça inteiramente secreta. (p. 33).
A decisão de publicá-la somente após a sua morte indica, num primeiro momento, a preocupação com o que poderia conceber que viesse a incomodar as pessoas ali citadas. Tocqueville havia realizado a proeza de retratar as pessoas partindo de vários e incisivos ângulos, não sendo por acaso que o autor se valia da metáfora da pintura de um quadro. Sua decisão por realizar o registro escrito dos acontecimentos, no entanto, trai um suposto desejo relativo à posteridade. Mas pode ser também um último exercício de atuação política e reflexiva, uma vida que se pretende esgotar até as vésperas do final. Essa impressão permanece, pois é notável o cuidado que o autor tem com o ato de escrever. Notável também a excitação que a elaboração dessa narrativa devia proporcionar a ele. Isso é o que indica vivacidade das descrições que fez, fazendo parecer estarmos outra vez em meio aos acontecimentos do passado.
Pergunto-me aqui o que se passa pela cabeça de um escritor quando da elaboração de uma obra que pretende ser póstuma. E de que qualidade seria, a da permanência no registro escrito sem que estejamos presentes? Trata-se de questões postas como pertinentes, ao menos no século em que vivemos, uma vez que o presente é o único tempo que prezamos. É evidente que, possuindo Tocqueville uma abordagem histórica – o que se configura na remissão constante às fontes ou ao risco da deturpação de um acontecimento de que tenha sido testemunha –, a morte se faça presente de modo menos idealizado.
Contudo, além disso, chama-me a atenção um exercício de escrita para o qual já não se leva em consideração a opinião pública, ainda que, quando muito, haja uma preocupação com o que possa afetar a sua memória para aqueles que ficam. Há alguma manifestação então consigo, mesmo que você já não exista mais. A inexistência desse monstro chamado público abre perspectivas para a incorporação de um mínimo de mentiras, da forma como Monteiro Lobato se referia em uma carta enviada para um amigo. Já não se interessa tanto assim pela repercussão e nem em se comportar almejando a aceitação de seu público.
Recupero aqui que, em Tocqueville, muito mencionadas são as suas referências ao individualismo e à tirania da maioria, dois conceitos aos quais a democracia dá abrigo e faz florescer. Em ambos os casos, nos deparamos com males não visados num sistema de governo que se projetou como puro e imune aos visíveis produtos do autoritarismo – o que na época de Tocqueville era identificado com o antigo regime absolutista. Para nós, essa percepção se volta para as ditaduras do passado ou aquelas que ainda persistem. Escrevendo para os leitores do futuro, Tocqueville estaria se privando da opinião pública, mas também exercendo mais uma vez a sua liberdade de reflexão num texto que, como se sabe, estava longe de agradar à maioria, ao menos não naquele momento.
Tocqueville havia intuído – e transformado em conceito – que a democracia dava lugar e incentivava o individualismo como única alternativa. Preocupava-o a obsolescência das associações em grupos, uma vez que nesse sistema todos se separavam, poderiam ir para longe de seus familiares ou do local em que tivessem nascido somente – o que não é pouca coisa – para sobreviver. Não se tratava então de, para o bem ou para o mal, contar com laços preexistentes que dessem suporte para cada um dos elos. O mais próximo que Tocqueville via em relação ao individualismo era o egoísmo. Mas em oposição ele a tradição impelia ir contra, sem que para tanto houvesse algum tipo de contradição. Refiro-me aos males do individualismo, pensando no que hoje temos e que se configura no comportamento nas redes sociais. Todos pensam em si próprios mesmo que dissimulem essa situação com a preocupação com o outro. No contemporâneo, o coletivo, o outro ou as minorias são ativos, mesmo que bem baratos. Poucos ou ninguém se interessa verdadeiramente por esses assuntos.
Finalmente, a definição de um sistema político que vê a justiça como algo validado pela maioria seguramente nos aproxima da tragédia. Pensemos nessa alusão em relação a uma escrita que se pretendeu póstuma desde o início, secreta, como diz Tocqueville no trecho citado acima. François Furet, um dos grandes mediadores do pensamento de Tocqueville no século passado, dizia que o “vínculo de Tocqueville com a história não é formado de gosto do passado, mas de sensibilidade em relação ao presente”. Os antigos e novos leitores de Tocqueville bem sabem tratar-se de uma verdade.
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447
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