Certamente, moralistas teólogos, agentes do Estado sabem que eles não podem abolir por completo o riso. Ao menos, que o riso se discipline; que ele se faça polido, discreto, elegante, distinto, se possível silencioso, e que só apareça por motivos válidos: ridicularizar os defeitos, os pecados, os vícios, reagir a inocentes brincadeiras com finalidade recreativa. Para as elites do mundo clássico e barroco, as Igrejas Protestante e Católica, o riso pode, a rigor, ser um ornamento da vida social e cultural, conformando-se a regras muito precisas; de modo algum ele poderá compor o tecido da existência, que é profundamente trágico, portanto, sério. A simples ideia de que o trágico possa ser cômico constitui uma monstruosidade em relação a esse pensamento do unilateral e do exclusivo. Georges Minois, História do Riso e do Escárnio. São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 318.
O trecho acima faz alusão ao contexto do século XVI, período em que, para Minois, empreendeu-se uma grande ofensiva contra o riso e o humor promovida por protestantes, católicos e pelo absolutismo monárquico. Recupero-o aqui pela semelhança com os tempos em que vivemos, que julgamos superiores em relação ao passado. Já tive a oportunidade de retomar os modos pelos quais a recuperação do passado se faz de um modo bastante arbitrário.
Não é disso que quero falar agora, mas sim de um interesse meu de comparar o nosso circuito de ideias e representações com outros do passado, que têm em comum o fato de serem bastante vigiados e censurados. Sejam instantes pautados pela religiosidade mais ortodoxa ou pela centralização política, eles se alinham ao contemporâneo mais exatamente por vivermos a mesma fúria pela exclusão daquilo que julgamos inadequado, subversivo ou nefasto. Além disso, outro aspecto comum que não pode ficar de fora, é que se monta todo esse aparato de controle com a motivação de se fazer o bem – mesmo que os perseguidos e punidos não julguem exatamente da mesma forma.
Voltemos então à epígrafe, para abordarmos o seu conteúdo. Em conversa com alguns alunos outro dia, falamos sobre o gênero das comédias nos cinemas. Dei conta de que as comédias estão em baixa ultimamente e perguntei se imaginavam os motivos. Para eles, essa situação decorre das dificuldades impostas pela autocensura, em especial o receio de cancelamentos ou de sofrer com as patrulhas ideológicas, que estão sempre dispostas ao assédio.
Tempos difíceis estes, em que sequer podemos contar com as risadas provocadas pelos filmes ou séries. Mas será que nem o caso do estilo pastelão pode ser realizado? Parece que não, especialmente se alguém ali for identificado como representante de uma minoria ou alvo de bullying. E quanto aos outros tipos de filmes cômicos, como eles seriam julgados hoje?
Tomemos Apertem os cintos… o piloto sumiu (Airplane), de 1980, um clássico dirigido por Jim Abrahams, David e Jerry Zucker, como exemplo. As sequências de envolvimento entre os dois personagens protagonistas passariam no crivo contemporâneo ou seriam percebidas como sexistas? A personagem feminina estaria objetificada? E quanto aos controladores de voo que ficam na torre do aeroporto, um deles viciado em todo tipo de drogas e um outro que espanca todas as pessoas que vêm lhe oferecer coisas desde que ele chegou. Como essas cenas seriam vistas hoje? Com perturbação?
Situações semelhantes podem ser vistas no filme Um convidado bem trapalhão (The Party),de 1968, dirigido por Blake Edwards com Peter Sellers – um clássico da década de 1960. Aqui o tema do sexismo poderia ser pensado, mas creio que o traço mais presente seria o da ridicularização de um cidadão indiano. Seria o personagem protagonista, identificado com um paspalhão, uma demonstração de preconceito contra um povo que foi colonizado pelos ingleses? Tratou-se de um roteiro xenófobo?
E que dizer de O jovem Frankenstein (Young Frankenstein), de 1974, de Mel Brooks? A criatura seria percebida como objeto de todo tipo de chacota e alvo constante de bullying? Além disso, o que ocorre no filme poderia ser incluído no conceito de capacitismo, ou seja, o preconceito contra um indivíduo com deficiência? Sem esquecer que essa produção se vale de cenas bastante erotizadas, o que provavelmente a colocaria sob suspeita pelos severos olhares contemporâneos.
Sei que nem todos – jamais alcançaríamos a unanimidade nesse ímpeto pelo controle – pensam ou agem assim, e esse é o último ponto sobre o qual quero refletir, pensando mais diretamente no Brasil. Parece-me que o domínio do léxico por parte daqueles que julgam os produtos da cultura – que dão ou não o seu precioso aval – revela a permanência da distinção de classe. Os que se julgam mais inteligentes, e por isso mais preparados para o encaminhamento de prescrições morais, são os que estão no topo da pirâmide. Em nosso país, a perseguição ao humor repete a nossa longa história de ódio que os abastados têm dos mais pobres. Não é difícil perceber que o verdadeiro desejo dos mais ricos é o de construir um muro que mantenha os mais pobres bem longe. Essa aspiração se manifesta inclusive e especialmente naqueles ambientes mascarados pela defesa das causas sociais. Nossa elite não suporta quem não pertença ao seu clube, nem mesmo os que se associaram a ele há pouco tempo.
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447
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