Behavior

Da nossa dependência daqueles que adoramos odiar

Toda alusão grandiosa ao Brasil somente pode ser percebida como cínica. Devemos sempre partir do pressuposto de que um juízo positivo acerca do nosso país sinaliza exatamente o contrário. Tornamo-nos mestres do disfarce e fingimos tanto que, praticamente, construímos um país paralelo em que evitamos qualquer tipo de contraditório.

Aqui, a contradição, seja por rigor, por uma assinatura que está faltando, ou pela necessidade de averbação em cartório, deve ser lida como uma dificuldade a mais que se traduz em cash. Levamos o ilícito como algo sério, não cabendo aqui a famosa afirmação de Charles de Gaulle sobre o Brasil.

Duvida? Quem quer problemas quando se entende que temos aos montes? A máquina foi feita para funcionar assim desde o início, sendo esse o seu propósito. Ela demonstra resistência ao tempo e se ajusta às últimas novidades que estão por aí. Tudo: smartphones, inteligência artificial, algoritmos, enfim, o que já foi lançado e o que aparecerá nas próximas décadas.

Sentimos que somos aceitos quando inseridos nessa engrenagem e do contrário, com baixa estima quando excluídos da patota. O aprendizado informal aqui é o que conta, aquele que permanece imune às modas moralistas desde sempre renovadas. E quando elas se configuram na formalidade, nas escolas, universidades e na mídia em geral, o preço sobe ou surgem novas possibilidades.

Aninhamo-nos esplendidamente na expectativa do futuro. E isto mostra uma logística fabulosa para se manter o presente como ele sempre foi. Deve ser por isso que somos os últimos em todas as pesquisas que visam identificar qualidades positivas e os primeiros quando se trata do que quer que seja que se configure em tragédia. 

Nosso compromisso não é contra a corrupção e o descaso. Temos os nossos corruptos de estimação e o que importa é sobreviver, pouco se importando com os outros. A desgraça não nos une e creio que nem no câncer somos mais solidários.

Oposto dos ideais de civilização iluministas, construímos aqui uma sociedade que articula a esculhambação como meio de se vencer as contingências. Fazemos isso tão bem que conseguimos até simular indignação, quando de fato ela somente existe quando nos sentimos excluídos de alguma mamata.

A sabedoria popular dizia que ser honesto no Brasil não se traduz em uma boa relação de custo e benefício. E quanto mais draconianas as medidas, mais passamos a imagem moralmente boa e mais podemos auferir resultados. Dependendo dos postos em que chegamos, tendemos a parecer imunes a qualquer tipo de problemas. Podemos ser privados por um curto tempo de algumas benesses, mas elas retornarão com juros num futuro próximo.

Podemos ser bastante circunspectos em relação ao passado, em especial para aquele que temos uma franca disposição quanto ao que é certo ou errado. Revemos toda posição que nos pareça injusta, mesmo que provavelmente fizéssemos o mesmo se no passado estivéssemos. Alguns de nós superestimamos a nossa boa vontade e heroísmo, sem medo algum de parecermos ridículos. A vergonha alheia é um fato consumado e é o que nos une, da elite ao povo.

Não nos preocupamos nem um pouco com o futuro e com o fato deste poder ser tão cruel conosco como somos com quem veio antes de nós. Emolduramos as nossas melhores fotos, motivo pelo qual somos viciados em selfies perto de todo lugar que podemos nos associar. E como não somos luminares no cultivo de virtudes, proliferamos imagens para lá de piegas.

É bastante fácil nos fazer emocionar e, por isso mesmo, tem se tornado cada vez mais difícil traçar as fronteiras entre publicidade, causas sociais, narrativas que envolvam as minorias e defesa por um dos lados do espectro político, e não que tudo isso não possa ser levado com alguma seriedade e constrição.

Falta-nos a aceitação de que mentimos e um mínimo de percepção de que prosseguimos sendo canalhas sem que qualquer tipo de disfarce possa vir a camuflar. A canalhice mais se destaca quando acreditamos sermos os campeões da moral, os melhores brasileiros que já existiram.

E talvez seja exatamente por isso que nos satisfazemos em encontrar personagens que se destacam por serem diametralmente opostos à imagem de nós mesmos, esta que queremos tornar pública. Por vezes parece que ficamos felizes em encontrar pessoas nefastas que viveram antes de nós. Elas nos dão referências para situarmos a nossa magnitude.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.