Os fracos não podem ser sinceros
La Rochefoucauld
E então o itinerário das discussões políticas apontava para a preocupação com os mecanismos que dão suporte para a democracia. Era comum que se remetesse às instituições ou se recorresse ao deboche que era escancarado em relação à justiça e ao Estado de direito. Expressões chiclete foram criadas à exaustão, e sempre desejavam transparecer uma franca e profunda preocupação com o que pudesse vir a romper os processos democráticos.
Dado que um presidente da República se manifestava de um modo compulsivo, como num caso típico de incontinência verbal, muitos motivos foram dados para de fato se duvidar de sua atuação. Na política, esse julgamento nem sempre está equivocado, mas com frequência serve aos interesses dos que almejam o poder. Há que se ser bastante ingênuo para acreditar estar defronte a uma ontologia com alto grau de precisão e de distinção.
No mais das vezes, os políticos não profissionais apenas defendem o que melhor combina com os seus scripts do momento. É um erro supor que haja algo de mais profundo nas abordagens contemporâneas sobre as contendas políticas, mesmo porque a qualidade das reflexões acompanha o nível dos poucos leitores, ou seja, são baixíssimas.
Não temos sequer esboçada aqui, com um nível mínimo de clareza, a linha que separa o que vem a ser uma ditadura de uma democracia. Não costumamos nos deter nesse tema, ao menos não de uma forma mais aprofundada. Operamos, no mais das vezes, a partir do imaginário, e, talvez por isso, tem-se uma carga mais exagerada de emoção. Os estremecimentos tendem a existir se ainda se convive com uma geração que elaborou uma memória acerca do passado mais recente.
Décadas de 1940 ou 1950 são retomadas a partir da mídia e sabe-se tanto delas quanto do período da invasão dos godos na Europa. Em vista disso, a recuperação do passado é muito mais uma enrolação ou um blefe para parecer mais sábio. Exibir conhecimento é uma estratégia de humilhação do outro ou da lembrança do lugar em que ele deve estar e permanecer. Creio que, por isso mesmo, aprendemos a camuflar os nossos interesses mais mesquinhos, transmutando-os em algo que se assemelhe a virtude.
Elevamos a temperatura nas conversas e discussões, especialmente quando se trata dos momentos que antecedem as grandes decisões políticas. Divide-se aí quem mais participa do debate e que produz o tom do que será divulgado do ponto de vista da mídia.
Fosse sobre a democracia e estaríamos mais atentos aos desarranjos entre os pesos e contrapesos, sempre lembrados quando se pensa sobre os dilemas dispostos pela relação entre os três poderes. Fosse sobre ela e estaríamos preocupados com a manifestação massiva da tirania da maioria que recai sobre o pensamento ou sobre as manifestações culturais. E ficaríamos tensos com a personalização da política, e mais ainda em relação à atuação do Poder Judiciário.
Não teríamos dúvidas sobre o que são ou não as ditaduras –sendo esse um sintoma bem claro da ausência de critério. Recuperemos aqui Cuba, Turquia, Venezuela, Nicarágua e Rússia. Não haveria consenso na definição do tipo de governo de cada uma dessas nações. E se recuperarmos o passado, a coisa fica ainda pior. Brasil, Argentina, Chile, União Soviética, Alemanha Oriental. Fala-se que são ditaduras seguindo o critério de gosto e de afinidade. Passa-se o pano para alguns ditadores e para outros não.
Tivéssemos a democracia como bem definida e permaneceríamos na defesa de instituições livres e autônomas, da alternância constante dos poderes e da existência de leis que dessem suporte a esse estado de coisas. Nesse caso, talvez nem viéssemos a utilizar a palavra democracia como se fosse numa assembleia, com fins políticos repletos de interesses.
Quer fazer um teste rápido? Observe as mesmas pessoas que se mostravam preocupadas e ultrajadas com o estrago da democracia. Veja agora se elas manifestam alguma tensão com o desequilíbrio político entre os poderes. Procure saber também os conteúdos publicados nas redes sociais delas. Veja se não estão somente falando do filme da Barbie ou do último show do Caetano ou da Marina.
Se de fato houvesse consenso na defesa da democracia, não teríamos sequer simpatia por um ou outro ente político ou candidato, uma vez que qualquer um que fosse eleito seria apenas um funcionário dela, nada mais do que isso. Superaríamos também a polarização, uma vez que estaríamos seguros quanto à manutenção do governo fundamentado na democracia. Mas não. Na realidade, ao menos por aqui, prefere-se uma ditadura, contanto que seja a sua, de estimação.
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447
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