
Quando emitimos uma “ideia feita” é como se isso estivesse dado; o problema está resolvido. A comunicação é instantânea porque, em certo sentido, ela não existe. Ou é apenas aparente. A troca de lugares-comuns é uma comunicação sem outro conteúdo que não o fato mesmo da comunicação. Os “lugares-comuns” que desempenham um papel enorme na conversação cotidiana têm a virtude de que todo mundo pode admiti-los e admiti-los instantaneamente: por sua banalidade, são comuns ao emissor e ao receptor. Ao contrário, o pensamento é, por definição, subversivo: deve começar por desmontar as “ideias feitas” e deve em seguida demonstrar.” Pierre Bourdieu. Sobre a televisão – seguido de A influência do jornalismo e Os jogos olímpicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, pp. 40-41.
A presença de algumas expressões coringas é bastante recorrente nos textos produzidos no nosso país, sejam eles jornalísticos ou acadêmicos. Refiro-me àquelas palavras que são utilizadas para o preenchimento do espaço e que, rigorosamente, nem sentido fazem, mesmo porque não produzem nenhum contraste. Quer fazer um teste? Imagine se o mesmo tipo de ausência de rigor fosse utilizado nas hard sciences. Não saberíamos o que reage com o que, se um procedimento se difere de outro e por que. Enfim, uma possibilidade que aqui se abre é a de perceber a falta de importância da maioria das abordagens softs no contemporâneo.
Ainda assim, o aparato existe e ele é formado por editoras, jornais, a mídia em geral, os aparelhos de cultura, etc. Nesse campo, escreve-se por rotina, de um modo mecânico, sem se dar muita importância, uma vez que quase ninguém lê ou, se o faz, nem se preocupa com as palavras e expressões escolhidas. No mais das vezes, concorda-se com o que já se concordava antes e discorda-se do mesmo modo. Difícil encontrar alguém que leia com a disposição de aprender algo novo, ou seja, de colocar em revisão uma crença que foi constituída por volta dos 15 para os 16 anos.
Em geral, as pessoas se dedicam mais a apreender uma nova postura no Pilates ou seguir uma dieta vegana do que a de fato tratar os textos com um mínimo de erudição. Já faz mais de quinhentos anos que amaldiçoamos a Idade Média e conjuramos tudo o que ali foi feito, inclusive o tipo de abordagem que se adotava aos textos. Quem dá bola para Aristóteles?
A situação que eu estou retratando aqui difere entre os países e culturas do mundo atual. Há lugares em que se nota uma tradição de pensamento, em especial quando se tem um circuito universitário antigo e uma cultura da produção de textos e de leitura. Bem, o nosso país não se encontra sequer próximo desse estado de coisas, muito pelo contrário.
A área de cultura tem participantes que podem ser contados nos dedos. Por ser um circuito tão restrito, é natural que os espaços sejam disputados na ponta da faca. Não se mata por isso, mas se humilha, se desemprega e nem se convida mais para passeios esquisitos. É desse povo e de seu séquito que falamos quando pensamos em expressões recorrentes e que não significam nada.
Aqui, vamos nos ater a duas palavras: revolucionário e transgressor. Por que elas são dispostas de modo a transparecer qualidades positivas? Revoluciona-se contra o quê? Deixa-se algo para trás, e por que isso é bom? E o que atrai em transgressão? Roubo e furto são transgressões que não são aceitas, mas, então, por que algumas são bem-vindas?
Repare como é comum encontrá-las juntas, especialmente nas efemérides ou quando alguém que tenha falecido guarde proximidade com as artes, cultura, literatura, teatro, etc. Para usá-las na mídia, nem se perde tempo no exame mais atento do que essa pessoa fez ou deixou de fazer. Se ela vem sendo chamada por esses adjetivos, ela é boa.
Revolução é uma palavra moderna que, quando remetida à história, se refere a uma troca de poder político e um rompimento com o que antes havia. Trata-se de uma expressão que se aconchegou melhor na área da sociologia, que de fato é sedenta de conceitos que se comportem como gavetinhas. O termo padece também de grandes justificativas, uma vez que não é usado quando abordamos a queda do Império Romano ou as invasões germânicas. Ou seja, ele trai também alguma arbitrariedade. Mas o que parece impossível é entender que, invariavelmente, a revolução seja algo positivo. No mínimo, teríamos que ter toda a história desenrolada e terminada para então apontar que a revolução foi boa ou má – e isso dependendo de variáveis incontroláveis.
Transgressão, como dissemos acima, dispensa longos comentários, posto que muito dificilmente conseguiríamos chegar a um consenso. Trata-se de uma palavra que, quando usada no contexto da sagração de um fato ou dos feitos de uma pessoa nos campos indicados, vem a significar algo de bom. Ajustam-se a ela expressões como disruptivo e desconstruído, ambas se posicionando como um avanço em relação a um ponto de referência dependente do gosto do freguês. Talvez seja por isso mesmo que essa palavra tenha o seu uso vago justificado por seu viés denotativo. Ou seja, assume-se, mesmo que não se diga, o traço metafórico dessa expressão. Enfim, há que se aceitar que se pode jogar conversas fora, na medida em que se aceita o uso da palavra transgressão como uma facilitação de fala, contando-se com a participação do interlocutor nessa confraria.
Acerca dessas palavras, pode-se perder a possibilidade de compreendê-las uma vez que você venha a romper com qualquer tipo de ideal de história que aponte para o avanço ou para o retrocesso. No mais das vezes, tais expressões somente facilitam a escrita do texto que ninguém vai se dar ao trabalho de ler, mesmo porque já se tem concordância antecipada com o que ali foi elaborado.
Contudo, em se tratando de comportamento político, definir-se nas redes sociais como seguidor de alguém aceito como revolucionário ou transgressor ajuda na definição identitária quanto ao lado em que essa pessoa se encontra. Não, não falamos aqui, nem de perto, de uma análise imparcial, mas sim da defesa dogmática de um lado que se concretiza em emprego, sociabilidade, aceitação social e demarcação de espaço, como um risco no chão. Experimente contestar o julgamento do povo moderno e viva a experiência da mais completa ausência de preocupação com reflexões céticas. Para finalizar, deixemos para um outro momento o exame de mais algumas palavras emblemáticas e que não possuem nenhum significado fora da seita dos midiáticos, tais como: icônico, descontruído ou ruptura.
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447
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