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Um mero exercício de imaginação, nada mais do que isso

Quero fazer um experimento calculado aqui, o que na historiografia tem o nome de história contrafactual. Niall Ferguson foi o organizador de um livro nessa linha, chamado Virtual History (Basic Books, 1997), e que em seus capítulos, pensou a continuidade da história, se, por exemplo, Carlos I tivesse evitado a Guerra Civil na Inglaterra, se os Estados Unidos não se tornassem independentes ou se Hitler invadisse o Reino Unido. Divago então e, inspirado nessa proposta, penso em algumas personagens da história e em como seriam as suas vidas em nosso país.

Comecemos por Hitler. Após a guerra, seria processado pelos crimes cometidos, contrataria um escritório de advocacia de destaque e sua defesa se prolongaria por anos a fio, pautada no argumento do lawfare. Ao final de oito anos, seria considerado culpado, mas ficaria pouco tempo detido, pois os advogados pediriam conversão em prisão domiciliar por conta de idade avançada. Passaria então os seus últimos anos de vida retirado em uma mansão situada em Canela, no Rio Grande do Sul, recebendo aposentadoria farta pelos anos que foi líder do governo. Após o falecimento, a aposentadoria seria herdada por seus filhos, netos e bisnetos, assim como as diversas propriedades que confiscou quando ocupava o posto mais alto do país. Dez anos após a sua morte, as provas de seus crimes seriam postas em dúvida e finalmente descartadas pelo entendimento de que os testemunhos teriam sido obtidos por coação. Trinta anos após a sua morte, seu nome se tornaria uma trend e colaboraria na eleição de um presidente da república.

Vamos agora pensar em Pablo Escobar. Esse caso dividiria opiniões, uma vez que Escobar teria proximidade com pessoas ligadas às artes que costumeiramente obteriam ricos patrocínios. No entorno de sua residência, as mortes por balas perdidas seriam unicamente explicadas pelos excessos das operações policiais. Assim como a truculência que seria sempre observada como fazendo parte do modo de ação dos militares. Possuiria um apelido carinhoso – Pabá – e viraria tema de uma escola de samba no Rio de Janeiro, além de personagem explorado num musical estilo Broadway. Para sempre seriam destacados os auxílios prestados às comunidades, a construção de hospitais e a doação de cestas básicas. Passaria alguns anos preso e protegido dentro de um presídio com cela especial com ar condicionado, visitas íntimas, e geladeiras com o bom e o melhor. Controlaria melhor a sua rede de negócios do que se estivesse em sua mansão no Cantagalo, RJ. Participaria de talkshows e seria disputado para aulas magnas em muitas universidades.

Jack, o estripador, então, como seria? Passaria cerca de quinze anos se defendendo das acusações, pesando sempre o fato de se suspeitar que seria um médico. A defesa de seus advogados seria pautada na alegação de que o seu cliente possuiria um transtorno psíquico, e essa contenda permaneceria sempre que se mencionasse o caso. No entanto, lideranças feministas não dariam trégua, jamais, e por conta disso ele permaneceria por cinco anos detido sendo solto uma vez revogada sua pressão preventiva. Morreria em paz e seria esquecido pela imprensa que somente falaria dele em casos de efemérides, por exemplo, nos aniversários de dez, quinze ou vinte e cinco anos de seu primeiro crime.

E Benito Mussolini? Sua vida íntima seria explorada por revistas no estilo Caras e Clara Petaci, seria figura sempre presente na cena noturna do beautiful people paulistano. Ao ser deposto do governo, passaria os seus dias em seu apartamento de 800m² com vista para o Cristo Redentor. Receberia medalha da Ordem do Mérito, algo que seria alvo de controvérsias somente nos jantares inteligentes que o Felipe Pondé conhece bem. Ao morrer, teria uma estátua sua, em tamanho real, num banco em Copacabana, de frente para o mar. Seu nome se consagraria em titulação de municípios, avenidas e escolas públicas. A eleição de um presidente de esquerda em nosso país possibilitaria releituras historiográficas, e, por ter criado a carta del lavoro, Mussolini passaria a ser visto como um progressista. Os livros de história, todos, teriam que ser revistos e alterados.

Al Capone? Construiria uma sólida carreira na indústria de bebidas, controlaria os jogos de azar na América Latina e teria bancas em cada esquina das cidades grandes ou pequenas. Os jogos continuariam a ser proibidos em nosso país, mas isso não seria problema e até faria bem aos negócios. Capone seria acusado de participação em mais de uma centena de crimes e assassinatos. No entanto, os processos correriam na justiça por mais de vinte e cinco anos, de tal modo que seus problemas judiciais seriam esquecidos. Sua prisão por cerca de quatro meses seria muito comentada. Mesmo tendo sido condenado em três instâncias, as provas seriam anuladas, uma vez que teriam sido obtidas pelo instrumento da delação premiada defeituosa. Todos os envolvidos no processo, e que tivessem testemunhado contra Capone, teriam mortes suspeitas e nunca decifradas. Pouco antes de seu falecimento, aos 95 anos, seria agraciado com um filme que contasse a sua história e que seria chamado de “O milagre dos peixes”.

E Jesus? Seria acusado de messianismo e por isso seria perseguido, caçado e criticado por intelectuais de mídia. Sua história daria oportunidade à elaboração de muitos roteiros de stand up. Seria identificado com pessoas pobres e de direita, o que facilitaria o preconceito. Morrendo de forma violenta, poucos falariam dele e seria prontamente esquecido. Passaria a objeto de estudos da psicanálise e por isso seria o título de uma síndrome. Cerca de oitocentos anos depois de sua morte, começaria a ser recuperado, mesmo que sempre cercado de dúvidas, especialmente em relação às fontes e documentos que comprovassem a sua existência. Contaria para essa retomada o fato de se supor que tenha liderado uma causa identitária, uma vez que esse tema seria uma unanimidade nas redes sociais, na publicidade, na universidade e na moda. Os mais ricos exibiriam o seu nome de modo discreto, mas o suficiente para ser percebido: pegaria bem falar dele.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.