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A crítica que se faz por aqui

Lembro-me de ler, numa página de cultura de um jornal, uma matéria cujo objetivo era passar em revista toda a discografia dos Beatles, indicando os pontos altos e os baixos. Eu me diverti com aquilo, uma vez que pensei: quem dá a mínima para uma crítica em português sobre a trajetória musical dos Beatles? Fiquei pensando que o cara que fez essa matéria estava querendo ganhar espaço parecendo superior e imparcial, em se tratando do objeto de sua análise.

A crítica não existe quando se aborda o último lançamento de um artista nacional consagrado, sendo então enviesada o bastante para demonstrar que Kant fracassou. Mais fácil então é parecer imparcial quando o objeto de análise vem do exterior. Acho engraçado quando alguém se esforça para realizar uma crítica formal, nos moldes canônicos. Para ser publicada em algum dos poucos espaços de cultura na mídia nacional, a crítica tem que ter um lado, valer-se de maneirismos e humilhar ou exaltar o objeto sem piedade nem constrangimento. Ocupam-se páginas assim e ficamos por aí no acordo tácito de que algo foi escrito e alguém leu.

A cultura letrada em nosso país exibe o seu aspecto exclusivo com pinceladas de provincianismo. No Brasil, o letramento é coisa de bacana, uma vez que é um luxo sobreviver no comércio de bens de cultura, pois se obtém sustento somente do que é agrário, civil, médico ou jurídico: a permanência do pensamento colonial pode ser descoberta na relação que temos aqui com os nossos afazeres. É por isso que, no mais das vezes, agimos como pequenos burgueses mesmo que falando de autores clássicos ou espalhando por aí quem deve ser o próximo presidente da República.

O curioso é que, na ambição de nos apresentarmos como modernos, expomos o nosso provincianismo mais arraigado. Cultura aqui é terra de ninguém, e costuma vir acompanhada de pires e mendicância por qualquer tipo de subsídio. Uma coisa é a que se revela em público e tantas outras são as que ocorrem nos bastidores. Faz-se comércio de virtudes de um modo constrangedor, tal é a sensação que se passa do sistema cultural, o campo, mencionado por Pierre Bourdieu.

Nesse sistema, como são poucos os agentes, o equilíbrio é frágil, um dependendo do outro, ou seja, um agradando o outro e evitando qualquer tipo de atrito, a não ser que seja político e que possibilite acessar outras moedas de troca. Caráter não paga a conta de ninguém. Ser virtuoso em nosso país é um mau negócio, e o candidato será notado como um trouxa, abandonado pela mulher e excluído da sociedade. Poderá, no entanto, depois de muitos anos, dar espaço para algum esperto que venha a se aproveitar de suas memórias.

Imagino que, na montagem das pautas e quando da necessidade de preencher os espaços vazios, se considere fazer uma entrevista com algum artista já conhecido ou outro que está construindo a sua carreira – como se diz – seguindo os passos que já se conhecem como viáveis. E, aí, fala-se sempre das mesmas coisas e toda a exaltação que se segue. Um dos motivos de sermos um país que se destaca na popularidade das redes sociais é que já fazíamos isso na crônica diária, desde os tempos da mídia em papel. O crítico é antes de tudo um fã que consegue falar com o seu ídolo.

A idolatria é próxima daquela que se manifesta em relação a alguns dos entes políticos, e, no geral, todos se conhecem, até mesmo porque eles são poucos e se contam nos dedos. No Brasil, a teoria dos graus de separação se faz com três pessoas. As chaves são as escolas, as universidades e uma estadia no exterior após se formar. Desse percurso teremos alguns poucos, que serão logo incensados por algum atributo que seja ligado à voz, poesia, música ou letras. Assim nascem os enfants terribles.

Recordo-me de ler entrevistas com artistas algum tempo atrás e notar que geralmente se pronunciavam sobre o que fizeram, fosse um disco ou o lançamento de uma música, como “este novo trabalho”. Minha atenção se fixava na quase negação do que tinham feito anteriormente, uma vez que abordavam o que estavam divulgando como uma superação. Pensava então na contradição havida e em como a proposta atual seria também relegada num futuro próximo.

Outro traço presente eram as perguntas sobre qualquer assunto ou tema, o que me passava a ideia de um grande generalismo. O artista em questão manifestava-se sobre política, mas bem poderia também rolar uma pergunta sobre ciência, se um grande feito tivesse ocorrido há pouco tempo. Mas é claro que o que mais se enfatizava eram as atitudes e comportamentos que eram tratados na lógica da superação, do avanço e da quebra de fronteiras, o que também emulava o nosso provincianismo atávico.

Com variações, tudo isso permanece e com pequenas diferenças entre a recepção cultural num órgão de mídia mais popular e em outro que circula entre a velha elite colonial. A crítica no Brasil é fruto de uma mistura entre tietagem, compadrio e necessidade de sobrevivência. Basta constatar que ninguém se preocupa com ela e que a sua existência não muda nada na ordem dos fatores.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.