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O luxo como um sinal de miséria

Países notadamente mais ricos do que nós, e que em grande parte distribuem essa receita de um modo, digamos, menos piramidal, há muito tempo deixaram de lado a aquisição de serviços pagos de limpeza, de construção ou até mesmo fazem de suas idas aos restaurantes um tipo de evento especial.

E, se agem assim, é porque tudo isso é bem caro em relação àquilo que cada um recebe, mesmo que serviços de saúde ou a educação formal sejam predominantemente assegurados pelo recolhimento dos impostos. Aqueles que já tiveram a oportunidade de mochilar pela Europa bem sabem que ficávamos em alojamentos estudantis, com quartos divididos com mais pessoas e banheiro coletivo. Isso além do fato de que comprávamos bebidas e comidas nos mercados, para que fizéssemos as nossas refeições no quarto ou num parque, quando não se estava no inverno.

No entanto, tudo isso era muito bem compartilhado com visitas aos museus – na Inglaterra, a maioria possuindo entrada gratuita – passeios e conversas. Bem sabíamos onde ficavam os lugares de luxo e podíamos conferir os preços e fazer comparações, inclusive na conversão para a nossa moeda. Era engraçado pensar no custo que poderia alcançar uma refeição nos restaurantes mais caros de Paris ou Londres, e ficávamos por aí mesmo, porque preferíamos tomar um trem e ir para um passeio mais distante numa ruína romana, por exemplo.

Não medíamos o que fazíamos pelo critério do luxo, mas sabíamos que comer um sanduíche com vinho no Hyde Park era algo notadamente prazeroso e que custava, não somente dinheiro, mas espírito. Falávamos então que essas viagens formavam o caráter, uma vez que aprendíamos a nos virar e a reconhecer com quem contar. Ganhávamos autonomia e nos sentíamos muito bem longe dos nossos pais, o que simplesmente já valia a viagem toda.

O efeito produzido era marcante, especialmente porque vínhamos de uma cultura provinciana, eternamente preocupada com a roupa mais adequada para sair no domingo. E esse traço provinciano e colonial aparece em muitas manifestações de riqueza em nosso país. A permanência do nosso passado, sem o contexto dele próprio, mas revivido pela fúria instagramável, se manifesta numa série de situações para lá de indiscretas. Uma das últimas modas é a de ser servido por garçons no cinema, quando instalado em quase camas. Difícil supor algo assim num país que de fato seja rico. Quanto custaria? Imagine o salário dos funcionários?

Mas não por aqui. O título dessa coluna faz alusão a esse caso, dentre tantos outros, que apresentam e dão corpo a esse comportamento. O luxo é sinal de miséria exatamente porque encontramos aqui pessoas disponíveis para trabalhos que não existiriam nos países mais ricos. O luxo então se mantém por conta da miséria que se encontra ao nosso redor. Esse sendo o aspecto brega – mas também cruel – das nossas elites.

A coisa é tão desconectada que acompanhamos com preocupação os acidentes que os motoboys sofrem no trânsito, mas raramente lembramos que tudo isso ocorre exatamente porque queremos que o produto que compramos chegue rapidamente às nossas mãos. Enfim, nada mais conta do que o presente, e raramente nos importamos com os outros.

Tudo isso fica mais nítido quando alguma tendência chegada dos Estados Unidos vem bater aqui. Os Estados Unidos estão unicamente preocupados consigo próprios, com o seu consumo de produtos e serviços feitos especialmente para eles. Muitos devem acreditar que estejam se integrando ao mundo rico, uma vez que filmes como Barbie estreiam simultaneamente aqui e no Primeiro Mundo. Sair por aí vestido de rosa é o sonho realizado de qualquer publicitário da década de 1950, não tão distante assim do uso das orelhas do Mickey quando na Flórida.

Não falamos somente de miséria por pobreza de bens materiais ou acesso aos serviços. A miséria se encontra também no pensamento e na fragilidade das metafísicas que são copiadas e produzidas à exaustão. Poderíamos aqui apresentar uma série de exemplos e situações, mas a primeira que nos ocorre diz respeito à preocupação com a educação formal. Um mantra que tem porta-vozes nas mais variadas frentes, afinal nunca pega mal defender o ensino ou os professores.

Na prática, nada se faz e ninguém dá a mínima importância. Sem dúvida, esse seria o nosso objeto de luxo e sofisticação, se de fato déssemos valor para esse tema. Mas não. Gostos promovidos por influencers chamam mais a atenção dos brasileiros que ambicionam participar da última trend. Falamos, praguejamos e fingimos exigir mudanças, contanto que tudo permaneça do mesmo jeito que sempre foi. Talvez seja por isso que o espírito woke tenha se dado tão bem por aqui.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.