O livro Privacidade é poder: por que e como você deveria retomar o controle de seus dados, de Carissa Vérez (São Paulo: Editora Contracorrente, 2021) oferece importantes justificativas para o título dessa coluna. Obra que se lê com grande proveito e que tem como principal mote o fato de inverter o pensamento que geralmente se tem em relação ao uso que fazemos da internet ou de tudo o que se relaciona ao contexto digital: automóveis conectados, cartões de credito, internet das coisas, Smart TVs. Enfim, a lista é longa e bem conhecemos de tantos outros gadgets.
Para a autora, o universo digital em que vivemos sofisticou-se na obtenção de informações a nosso respeito. Basta dizer que os paralelos somente podem ser alcançados quando comparamos este contexto com outros da história, marcadamente aqueles mais totalitários. Mas não é somente isso. Se no passado tais governos extorquiam informações pessoais por meios ilícitos e violentos – ecoando aqui o 1984, de Orwell – hoje, eufemismos acobertam a mais descarada invasão de privacidade. E se você tem alguma dúvida sobre isso, retome aqui a última vez que leu integralmente a política de privacidade de um programa ou aplicativo baixado. Ou, então, qual foi o momento em que você não permitiu que um site obtivesse a sua localização? Mais uma tentativa: quando foi que você se negou a aceitar os cookies quando da entrada em um novo site?
De acordo com Vérez, tais situações estão longe de serem inofensivas em relação à nossa privacidade. Pelo contrário, franqueamos o acesso ao que há de mais pessoal em nossas vidas. É importante notar as comparações feitas pela autora quando aproxima o mundo digital do que temos concretamente. Quer um exemplo? Imagine se abriríamos a porta de nossas casas para pessoas que sequer conhecêssemos. Ou então se deixaríamos que pessoas estranhas se aproximassem de nossos filhos. Pense também na nossa crença na inviolabilidade de nossas correspondências e compare com os e-mails que enviamos e recebemos. Situações como essas, para as quais teríamos respostas prontas, sequer são percebidas enquanto tais no uso corriqueiro que fazemos do digital.
Mas é exatamente o que ocorre, sem que nos demos conta ou que suspeitemos. Esse é o mundo ideal das Big Techs, uma vez que ninguém se manifesta de modo contrário ou demonstra grande preocupação – ao menos uma que leve à alteração desses procedimentos. Como supor que alguém consiga hoje se afastar do mundo digital? É possível supor que uma pessoa não assista filmes ou séries por streaming? Alguém que não tenha um celular? Uma pessoa que pague todas as suas contas com dinheiro vivo? Ou então que não peça definitivamente nada via delivery? Foi-se o tempo em que zoávamos alguém que gostaria de viver em Visconde de Mauá, sem luz elétrica ou água encanada.
O uso de tudo o que deriva do digital se estabeleceu de modo compulsório e é inútil supor que possamos alterar esse processo. Aldous Huxley estava definitivamente certo quando previu que, no futuro, nós gostaríamos de ser escravizados, uma vez que os neologismos passariam exatamente a ideia contrária. Podemos até escolher sermos ou não veganos, termos ou não um carro ou consumir ou não produtos que venham de uma loja que pratica assédio moral contra seus funcionários. Mas, quando postamos essas escolhas nas redes sociais, estamos nos rendendo ao sistema mais totalitário jamais sonhado. De acordo com Carissa:
As redes privadas de publicidade e vigilância são chamadas de “comunidades”, os cidadãos são “usuários”, o vício em telas é rotulado como “engajamento”, nossas informações mais sensíveis são consideradas “poeira de dados” ou “migalhas digitais”, o software de espionagem é chamado de “cookie”, os documentos que descrevem a nossa falta de privacidade são intitulados “políticas de privacidade”, e o que antes era considerado “grampo” é agora o alicerce da economia na internet.” (Carissa Vélez, Privacidade é poder, pp. 97-98).
Vivemos então em uma economia de dados, e, na maior parte das vezes, somos conduzidos ao fornecimento constante e imperceptível de informações que jamais franquearíamos ao público, este sendo o viés principal da obra em exame. Esse é o acerto maior da obra, que estimula a pensarmos de uma maneira não suposta sobre o que procuramos, fornecemos e realmente obtemos nas nossas perambulações digitais. Trata-se então de uma abordagem filosófica, na medida em que nos incita a rever conceitos ou nomes que podem então ser vistos como arbitrários ou somente dispostos pelo marketing. Ao término do livro, ficamos com a percepção de que o principal ativo no mundo digital é tudo aquilo que não estamos visando ou levando em consideração, por encontrar-se disfarçado por inúmeras circunstâncias. Mas o pior mesmo é concluir o texto e sequer termos o amparo de acreditar termos tomado contato com alguma espécie de teoria da conspiração fácil de ser desmontada. E, apesar de as últimas páginas elencarem sugestões e propostas que limitem a transferência de nossos dados pessoais, terminamos o livro de um modo ainda mais pessimista, até mesmo porque duvidamos da possibilidade de sairmos desse contexto.
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447
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