Núcleo de Filosofia Política

O mundo sempre nos surpreende

Agradecemos à Liberty Fund, editora de Law and Liberty, por autorizar a publicação deste artigo.

Tradução: Lavínia Pena e Marcos Pena Jr | Revisão: Luiz Bueno e Flávia Sarinho | © Labô
Texto original: “The World Always Surprises Us” – publicado em lawliberty.org  (10/10/2021)

Mais do autor na Law & Liberty: CLIQUE AQUI.

Muitos anos atrás, um amigo meu foi internado para exames no Hospital de Doenças Tropicais (Hospital for Tropical Diseases) em Londres. Seus resultados pareceram levar muito tempo, e foi apenas quando ele saiu que um doutor lhe disse que ele havia sido retido no hospital para manter uma cama ocupada. O Hospital de Doenças Tropicais tentava, então, mostrar-se necessário (e, portanto, preservar seu financiamento) por meio de altas taxas de ocupação de leitos. Leitos desocupados e capacidade ociosa estavam se tornando um anátema para os gestores dos hospitais, considerando que eles mesmos estavam sendo julgados pelas taxas de ocupação. Um leito vazio era sinal de ineficiência ou algo pior.

Desde então, todos os hospitais da Inglaterra têm operado em uma atmosfera de crise perpétua, como se o colapso total fosse iminente. A capacidade tem sido permanentemente estendida até o ponto de ruptura. Claro que existiam motivos para a pressão aparentemente interminável em leitos hospitalares, para além da decisão dos gestores de reduzir seu número no momento em que vissem uma cama vazia ou supostos ganhos em eficiência. O envelhecimento da população (maior parte do esforço médico sendo despendido em pessoas com idade avançada em seus últimos anos de vida), a possibilidade de tratamento de condições que antes eram intratáveis e a insuficiência de enfermeiras e outros trabalhadores essenciais, apesar do recrutamento em massa do exterior, contribuíram para tal situação. Antes considerados auxílios essenciais para recuperação, a calma e o silêncio se tornaram impossíveis.

A gestão hospitalar chegou a acreditar que a crise perpétua era um sinal de eficiência, pois mantinha as pessoas alertas e as fazia trabalhar até o máximo de suas capacidades. Por esse ponto de vista, a capacidade ociosa, mesmo quando uma possibilidade, levaria à complacência e ao desperdício. A necessidade foi, então, transformada em virtude.

O ajuste exato do número de leitos hospitalares à suposta demanda, como se toda a futura demanda fosse previsível com precisão, era arrogante. A suposição era de que nenhum imprevisto poderia surgir para atrapalhar os cálculos. Quando a COVID chegou, descobriu-se que praticamente todos os leitos de terapia intensiva já estavam ocupados por pacientes com outras doenças. O aumento repentino da demanda foi atendido pela redução das atividades normais, com consequências que ainda precisam ser totalmente avaliadas. Administrar hospitais como uma fábrica, em uma base just-in-time, acabou não sendo algo muito adaptável.

Algo similar está acontecendo agora – ou talvez eu deva dizer que pode acontecer – com o fornecimento de energia do país. Se houvesse um inverno rigoroso, provavelmente as luzes se apagariam e as fábricas fechariam. A Grã-Bretanha se tornou mais dependente de fontes de energia como sol e vento, mas se o vento não sopra e o sol não brilha, alternativas terão de ser encontradas. Em menos de dez anos, a geração de eletricidade a partir do carvão, que representava cerca de 25% do total, foi quase proibida, e a energia nuclear foi reduzida à metade – tudo para salvar o planeta. 

Nossos sistemas políticos são configurados de forma que lições erradas possam ser aprendidas a partir da experiência

Enquanto isso, o país reduziu sua capacidade de armazenamento de gás a quase zero, sob o fundamento de que o gás sempre pode ser importado de qualquer outro lugar através do Mar do Norte, de países com instalações de armazenamento de gás. Mas acontece que esses mesmos países podem enfrentar escassez se o inverno for rigoroso, porque (com exceção da Noruega) eles dependem do fornecimento russo, e o Sr. Putin, que foi repreendido e intimidado pelos europeus – em verdade, não totalmente sem justificativa – pode ser o último a rir. Se houver escassez, é improvável que os fornecedores estrangeiros da Grã-Bretanha continuem suas exportações. Eles agirão, corretamente, em seu interesse nacional. Assim como a honra era para Falstaff uma mera expressão verbal, a solidariedade internacional será para os países em meio à escassez de energia.

Em outras palavras, aqueles que decidiram a política energética do país não conseguiram antever, ou mesmo imaginar, que as circunstâncias poderiam mudar. Eles procederam como se o momento presente fosse eterno; em seus cálculos, eles descontaram todas as considerações estratégicas.

O problema com considerações estratégicas é que elas não são facilmente calculáveis, embora os custos de levá-las em consideração possam sê-lo. Os custos de não levá-las em conta são desconhecidos, pelo menos antecipadamente. Manter a capacidade ociosa é caro, mas se era um custo em que valeria a pena incorrer só a experiência futura poderia dizer. Pode não haver um inverno rigoroso, por exemplo, hipótese em que não haveria crise energética, e aqueles que negaram a necessidade de uma reserva, ou um plano B, podem se considerar justificados, ou pelo menos não culpados.

Até que ponto as considerações estratégicas devem afetar a política econômica é uma questão de julgamento, e julgamento, por definição, é falível. Se elas recebem peso demais, elas podem levar à queda de indústrias que não estão sob pressão para melhorar ou se tornarem mais eficientes. Mas se não lhes for dado peso suficiente, elas podem se vingar causando uma crise ou mesmo uma catástrofe. Isso é especialmente verdadeiro em países geograficamente vulneráveis, como a Grã-Bretanha.

Nossos sistemas políticos são configurados de forma que lições erradas possam ser aprendidas a partir da experiência. A França, em 2006, estava extremamente preparada para a epidemia viral da H1N1 que, na verdade, nunca aconteceu. Adquiriu-se um enorme suprimento de máscaras eficazes que, no entanto, nunca foram necessárias e tiveram que ser destruídas quando a validade expirou. O ministro responsável por adquiri-las foi ridicularizado por ter desperdiçado tanto dinheiro, de forma que quando, mais de uma década depois, tais máscaras foram exigidas, o país não tinha nenhuma e o governo recorreu à alegação de que elas não eram necessárias. Assim que ficaram disponíveis, porém, utilizá-las tornou-se obrigatório.

Descobriu-se que, no intervalo, o país tinha perdido sua capacidade de produzir máscaras e que estava totalmente dependente de importações chinesas. Os argumentos para a terceirização eram óbvios: as máscaras eram mais baratas se produzidas na China, e esse era o início e o fim da questão.

Tivemos um despertar grosseiro para o fato de que o mundo é mais complexo do que princípios ou cálculos simples permitem, e que o exercício do julgamento – sempre falível, sempre provavelmente errado, nunca totalmente definível – é tão necessário quanto o cálculo. O mundo sempre nos surpreenderá.

Sobre o autor

Theodore Dalrymple

Theodore Dalrymple é médico prisional e psiquiatra aposentado, editor colaborador do City Journal e Dietrich Weissman Fellow do Manhattan Institute. Seu mais recente livro é Embargo and other stories (Mirabeau Press, 2020).