
Se o Holocausto foi um genocídio entre muitos, teve características graças às quais se distinguiu dos demais. Ao contrário de todos os outros, não foi limitado nem pelo espaço nem pelo tempo. Foi dirigido não contra um obstáculo local ou regional, mas contra um inimigo mundial visto como uma ameaça que operava em escala global. Estava vinculado a um plano ainda mais amplo de reorganização e reconstrução racial envolvendo novas matanças genocidas em escala quase inimaginável, visando, contudo, a limpar o caminho em uma região particular – o Leste Europeu – para uma luta adicional e mais ferrenha contra os judeus e aqueles que os nazistas consideravam fantoches judaicos. O Holocausto foi desencadeado por ideólogos que viam toda a história mundial em termos raciais. Todas essas coisas fazem dele um evento único e singular. Richard J. Evans, Terceiro Reich na história e na memória: novas perspectivas sobre o nazismo, seu poder político, sua intrincada economia e seus efeitos na Alemanha do pós-guerra. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018, pp. 399-400.
O trecho acima é a conclusão de um brilhante ensaio – cujo título eu replico nessa coluna – que questiona a validade da aplicação do conceito de genocídio em relação ao Holocausto. Trata-se da exposição de um percurso de investigação cujo objetivo era demonstrar se esse triste evento da história se distingue de outros casos em que também se usou a expressão genocídio. Nessa direção, Richard Evans recupera casos terríveis de assassínios em massa, tais quais o extermínio dos armênios pelos turcos em 1916, a grande fome na Ucrânia no início de 1930 (Holodomor), o massacre impingido pelos russos contra os poloneses em 1939 e o brutal assassinato da minoria tutsi pelos hutus em Ruanda no ano de 1994.
Para cada um desses acontecimentos, não menosprezando o sofrimento pela violência que foi perpetrada, o autor segue examinando os motivos que levaram a esses desfechos. Para tanto, sua investigação caminha para a justificação ou não do Holocausto como um evento particular em relação aos outros também reconhecidos como genocídios. O que teria tornado singular esse fato histórico?
Do ponto de vista da história, e em relação à procura de causas e motivos, a reflexão buscou parâmetros nas variáveis do tempo e do espaço – o que se costuma nomear por contexto. Dessa forma, violências contra diversos povos geralmente se pautam pelas disputas por territórios, desavenças religiosas ou ideológicas. Esses três fatores podem se qualificar como motivadores de muitos dos episódios de extermínio em massa ocorridos na história. Mas, sendo assim, qual seria a particularidade da “solução final” imposta pelos nazistas contra os judeus? Reparemos que, aqui, o historiador está se dispondo a encetar o seu objeto a partir de um ponto de vista cético, isto é, na comparação com outros eventos similares, o que o inquérito pode revelar de unicidade no caso do Holocausto?
A partir desse instante, no que será a virada em direção à conclusão de sua arguição, Evans vai pinçando e examinando os fundamentos nazistas para o que viriam a colocar em prática – tais como acusar os judeus de contarem com privilégios na luta pela sobrevivência em detrimento do povo alemão ou um grande obstáculo para o espaço vital (Lebensraum), visto como necessário para o franco desenvolvimento da “raça ariana”. Em cada um desses casos, como que procurando se desvencilhar das armadilhas da narrativa nazista, a argumentação de Evans vai descartando cada uma dessas motivações, uma vez que elas não explicam com justiça o que de fato acabou ocorrendo.
Servindo-se da expressão, Guerra Racial, Richard Evans infere que a motivação nazista era o extermínio de um povo simplesmente por ele existir. O Holocausto dos judeus na Segunda Guerra Mundial é o que distingue esse evento de todos os demais, uma vez que não falamos mais de uma guerra convencional, de um exército contra o outro e do bombardeio de civis.
Tal abordagem muda o nosso entendimento em relação ao ocorrido. Deixamos de vê-lo como mais um confronto dentre tantos e passamos a tomá-lo pelo que ele se configurou na realidade: o genocídio de um povo específico era o objetivo primeiro do nazismo, sendo que as ocupações territoriais e invasões foram motivadas por essa ambição. A partir daí, podemos cotejar a escravização de russos ou poloneses com a fundação dos campos de extermínio de judeus: esse povo sequer merecia a terrível condição da escravidão.
O ensaio elaborado por Richard Evans originou-se de uma palestra proferida na embaixada francesa em Berlim, por ocasião de uma conferência “sobre o uso de gás venenoso como meio de realizar assassinatos em série em campos de prisioneiros nazistas.” Sua leitura, hoje, também nos faz refletir sobre o uso indiscriminado e arbitrário de expressões que se tornam genéricas e que, se assim se configuram, perdem a especificidade característica. O uso da palavra genocídio no contemporâneo é um exemplo desse equívoco, na medida em que ele impede a percepção de contraste. Agindo assim, perdemos a capacidade de diferenciar os acontecimentos passados e corremos o risco contínuo de perpetrar novas e terríveis tragédias. Ou, de modo mais corriqueiro, emitimos juízos falaciosos, mas que são cambiados como se verdadeiros fossem.
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447
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