O Vazio Existencial na Contemporaneidade

Liberdade é uma questão de Ser

Ao longo do século passado, não foram poucos os pensadores que alertaram para a questão da falta de sentido na vida. Os motivos são vários, desde a instrumentalização da pessoa, em suas mais variadas formas, até as declarações públicas que assumem o vazio existencial como parte do cotidiano. O neuropsiquiatra Viktor Frankl dedicou sua vida a estudar esse dilema, apontou diversos caminhos de superação, assumindo que é o contexto social que retrata a enfermidade do espírito de época (Terradas, 2023).

A situação no início do século atual não parece auspiciosa, ao contrário, irrompem agravantes que ressaltam a falta de sentido, com o aumento significativo de enfermidades e transtornos mentais como depressão, ansiedade e burnout. Dentre essas enfermidades, a ansiedade vem apresentando alargamento considerável, e um dos motivos apontados chama a atenção por ser algo relativamente evitável: o uso excessivo de telas – computadores, celulares, tablets – bem como o uso indiscriminado das redes sociais (G1, 2023).

Ante essa realidade, o vazio é flagrante. A sensação de falta de sentido se apresenta como consequência recorrente ante a normalização do vazio, que por sua vez é uma constante pelo excesso da exposição online. A interação virtual caracterizada pela volatilidade incita julgamentos e cancelamentos públicos através do comportamento que tenta, sem sucesso, reproduzir a perfeição. Esse processo aniquila a espontaneidade, na expectativa de que tudo – também a vida – seja passível de edição. 

Nesse contexto, a liberdade adquire ares de cárcere. O que se obtém a partir da distorção do conceito de liberdade é a massificação das ideias, associada à despersonalização de fotos, vídeos, falas e escritas obrigatoriamente padronizadas. Isso vai ao encontro do que o filósofo alemão Martin Heidegger queria dizer com o conceito de “existência inautêntica”, uma existência que sofre o processo de queda absoluta até perder-se completamente na massa. O existencialismo do filósofo alemão, em diálogo com a Logoterapia do psiquiatra austríaco, pode iluminar os horizontes existenciais, contribuindo no enfrentamento de um grande desafio contemporâneo que é a liberdade encarcerada.

Frankl apresenta a pessoa como um ser biopsicoespiritual (2020, p. 6) que age no social, capaz de realizar sentido, e ensina que “cada situação da vida envolve uma pergunta, um chamado; e devemos tentar descobrir seu sentido” (2021, p. 150). Paralelo a isso, Heidegger, em sua obra Ser e Tempo (1927), apresenta o conceito de existência autêntica, que pode contribuir nessa reflexão. Como se dá a existência autêntica? Justamente quando situamos o ser humano (In-der-Welt-sein ou ser-no-mundo) em sua facticidade cronológica, a saber, sua existência temporal. Em outras palavras, quando o ser humano se dá conta de que sua existência não é eterna no mundo-da-vida (Lebenswelt), compreende assim sua finitude, podendo a partir dessa compreensão buscar a transcendência. Confrontado com o conjunto de possibilidades que a vida oferece, ao Ser compete fazer escolhas, consciente da liberdade que implica tal ação. Isso é possível a partir do momento em que, por exemplo, assume um projeto de vida.

Assumir um projeto de vida seria assumir uma existência autêntica, que brota do cuidado (Sorge). Cuidado com o quê ou com quem? Cuidado consigo mesmo e com a alteridade, ou seja, com tudo aquilo que não sou eu mas que, simultaneamente, se relaciona com meu ser, já que o homem é sempre Dasein, é ser-no-mundo. 

Desse modo, o processo de existência autêntica acontece na conscientização e posse da história pessoal e coletiva. Frankl corrobora esse pensamento quando escreve: “Com efeito, o verdadeiro ser humano, totalmente ao contrário da concepção psicanalítica, não é um ser impulsionado; trata-se muito mais, de acordo com Jaspers, de um “ser que decide”, ou, no sentido de Heidegger e também de Biswanger, de um “estar aqui”.” (2020, p. 21) Nesse sentido, a pessoa incondicionada se liberta de uma realidade determinista e se responsabiliza por como irá interagir em vista do que lhe acontece. Assim, conhecendo o seu passado e o espírito do tempo, as raízes culturais, étnico-raciais, linguísticas, espirituais, o ser-homem pode antecipar o futuro, lançando-se no presente sem necessariamente repetir a história, pois se o espírito nunca adoece, como afirmava Frankl, sempre é possível transformar a si mesmo e a realidade. Assumir o passado significa também ser capaz de curá-lo, sem esquecer jamais que o cuidado se dá em si, no mundo e com o mundo. “A melhor forma de ter um passado do qual se possa orgulhar é viver uma vida plena de sentido”(Gomes, 2023).É na consciência do que foi vivido que se forja espaço para o devir.

A existência inautêntica, por sua vez, se dá na realidade que condena o espontâneo, que massifica opiniões e combate o pensamento crítico. Não é facilmente percebida, mas sim um processo que ganha força ao longo do tempo e pode abrir caminho para uma sociedade enferma em todos os sentidos. Onde não há espaço para pensar, questionar e criticar, não haverá espaço para a liberdade. Na existência inautêntica não cabe qualquer projeto de vida que não um simulacro do que se espera de alguém que se proclama ser-do-bem. Sem autenticidade dificilmente haverá condição para encontrar sentido num projeto. Aqui, a própria liberdade se descaracteriza. “Ser livre é pouco, ou nada, se não houver um para quê” (2020, p. 54).

Assumir um projeto de vida que não seja de destruição do ser, de anulação de outras pessoas e seres do mundo ou de aniquilação do próprio mundo pode ser uma ação de genuína liberdade, uma vez que a existência humana não é descolada da realidade que a cerca e deve estar consciente disso. Um projeto significativo é o que permite cogitar a construção de um legado. 

É justamente a vocação que dá um sentido unificante à vida de cada pessoa, e através dela se descobre a própria missão no mundo. E para des-cobrir a própria vocação, cada pessoa deve desenvolver a escuta ontológica como uma postura existencial. (Lombardo Jr., 2021).

Vale salientar que deixar um legado é diferente de assumir um trabalho como um simples meio de acumular riquezas, (re)produzindo tecnologias ou novos meios de produção, tendo o sucesso como propósito. O sentido do trabalho, nesse caso, é missão e ocasião de melhorar a si mesmo, desenvolvendo dons e virtudes, cuidando dos outros, da sociedade e do mundo enquanto tal. Uma escolha consciente, não uma reprodução vazia que só almeja likes. A dimensão da comunhão não é meramente social. Antes, é também laborativa, pois somente na relação com outro e com o mundo a pessoa encontra o sentido da própria existência. Assim, encontrar o espaço para a comunhão requer uma postura existencial de autodistanciamento, e o caminho para tal é o amor.

Uma pessoa é um ser espiritual constituído como tal de forma subsistente e independente do seu ser; mantém essa dita subsistência graças à adesão a uma hierarquia de valores, livremente assumidos, assimilados e vividos por meio de um empenho responsável e de uma constante conversão; unifica assim sua liberdade e todo seu agir. Desenvolvendo-se por meio de atos criativos a singularidade da própria vocação. (1963, p. 553)

É necessário, portanto, libertar a liberdade. Como fazer isso? Transcendendo aos juízos coletivos, enfrentando os conceitos politicamente corretos vazios, definidos por Luiz Felipe Pondé como um tipo de ideologia oportunista que visa inviabilizar o livre comércio de ideias (2012, p. 216). Libertar a liberdade é se recusar a dizer como as pessoas devem ser ou se comportar, transformando assim a cultura e a linguagem, sacrificando a mesma liberdade que pretende defender. É também recusar seguir quem impõe essas condutas desumanizantes. É dar conta de não querer pertencer. Reconhecer o vazio.

Vazio que também acontece quando somos impedidos de sermos nós mesmos, como uma frustração da vontade de sentido, ou seja, quando somos frustrados na nossa vontade de realizar. Isso implica que teremos que impor nossa condição no mundo, pois nem sempre teremos pessoas apoiando as nossas realizações. (Gomes, 2023)

Somente a pessoa humana pode assumir o espírito da época (Zeitgeist),como afirma Heidegger,para curar a enfermidade do espírito de seu tempo a partir de uma existência autêntica, livre do conformismo que caracteriza a massificação na sociedade atual (2003, p. 19). Frankl definiu a Logoterapia, exclusivamente para propósitos didáticos e numa tradução literal, como a cura pelo sentido. O próprio Frankl afirmou ter encontrado o sentido de sua vida na autotranscedência: “O sentido da minha vida é ajudar os outros a ver o sentido de suas vidas”(2010, p. 155). A liberdade respira na autenticidade, clama por consciência e convoca a pessoa a se responsabilizar por suas decisões. A escolha da própria existência pede consciência, tira a pessoa de um cotidiano impensado e apressado, abre espaço para o ser livre.

No horizonte da existência inautêntica está o vazio das causas massificadas e despersonalizadas. É na existência autêntica que sobrevive a liberdade, bem como o sentido, único e irrepetível, a cada situação ou momento. Num exemplo concreto e real, ao escolher encontrar com Heidegger após um longo período nazista em que ocuparam posições antagônicas, Frankl não agiu como uma vítima ou como um mártir, mas como um ser consciente, responsável e principalmente, como o homem livre que era.

A liberdade desencarcerada, portanto, reflete a existência autêntica e realiza a unidade de vida em nível pessoal, realizada a partir da vocação assumida como missão: um projeto de vida no qual o verdadeiro sentido unificante seja o amor.

Referências Bibliográficas

Terradas, Adriana Sosa. Um recurso ante o sofrimento e o vazio: a atenção plena. off-lattes publicado em 2023. Link https://offlattes.com/archives/13271

G1 Saúde publicado em 2023. Link https://g1.globo.com/saude/noticia/2023/02/27/por-que-o-brasil-tem-a-populacao-mais-ansiosa-do-mundo.ghtml

Xausa, Izar Aparecida de Moraes. A presença Ignorada de Deus – introdução. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2020. Petrópolis: Coeditora Vozes, 2020.

Frankl, Viktor Emil. A Falta de Sentido. Campinas: Editora Auster, 2021.

Frankl, Viktor Emil. A presença ignorada de Deus. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2020. Petrópolis: Coeditora Vozes, 2020.

Gomes, Francisco Carlos. É possível dar sentido à vida de alguém? off-lattes publicado em 2023. Link https://offlattes.com/archives/13995

Lombardo Jr., Gilberto. Problema e mistério, sou espectador ou ator? off-lattes publicado em 2021. Link https://offlattes.com/archives/9682

Mournier, Emmanuel. Manifeste au Service du Personalisme. Paris: Editora du Seuil, 1963.

Pondé, Luiz Felipe. Guia politicamente correto da filosofia. São Paulo: Editora Leya, 2012.

Frankl, Viktor Emil. Sede de Sentido. São Paulo: Editora Quadrante, 2003.

Frankl. Viktor Emil. O que não está escrito nos meus livros. São Paulo: É realizações. 2010.

Imagem: Philadelphia County Prison, 1965 (Jack E. Boucher/Library of Congress/Wikimedia Commons)

Sobre o autor

Kelma Mazziero

Graduada em Direito, com pós-graduação em Ciências da Religião e pós-graduação em Logoterapia e Análise Existencial pela Universidade Católica Argentina (UCA). Pesquisadora do grupo de pesquisa “O vazio existencial na contemporaneidade e as possibilidades de realizar sentido” do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.

Sobre o autor

Gilberto Lombardo Jr

Mestre e Bacharel em Filosofia, com especialização em Metafísica e Ciências pela Pontifícia Universidade da Santa Cruz (Roma). Docente e Diretor da Faculdade de Filosofia do Instituto São Boaventura. Docente do curso de Filosofia do Seminário Maria Mater Ecclesiae do Brasil. Pesquisador do grupo de pesquisa "O Vazio existencial na contemporaneidade e as possibilidades de realizar sentido", do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.