Behavior

A morte da política tal qual a conhecíamos

Mas, em um sentido mais amplo, não podemos dedicar… não podemos consagrar… não podemos santificar este solo. Os bravos soldados, vivos e mortos, que aqui lutaram já o consagraram de maneira muito superior ao pouco que nos seria possível acrescentar ou subtrair. O mundo pouco atentará e tampouco recordará por muito tempo aquilo que aqui dizemos, mas jamais poderá esquecer aquilo que eles fizeram. Cabe a nós, os vivos, portanto, dedicar nossas forças à tarefa inacabada que aqueles que aqui combateram conduziram adiante com tamanha nobreza até agora… que dos mortos a quem honramos, adquiramos devoção ampliada à causa pela qual sua devoção foi expressa da maneira mais plena; que nós aqui resolvamos da forma mais altaneira que esses mortos não tenham dado suas vidas em vão; que este país, sob a tutela de Deus, veja um renascimento da liberdade; e que o governo do povo, pelo povo e para o povo não pereça neste mundo. Abraham Lincoln, O discurso de Gettysburg, 19/11/1863. Tradução de Paulo Migliacci, Folha de São Paulo 22/02/2009.

A epígrafe acima não foi colocada ao acaso. Pensei também em referenciar o discurso fúnebre de Péricles que se encontra na História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides. A busca pelo passado mais distante também não se deu de modo aleatório. Minha proposta foi a de procurar de modo consciente, sinalizar maneiras distintas de se posicionar em relação ao fazer político, e isso, do ponto de vista da classe política e de sua recepção. Levei também em consideração o peso da responsabilidade de uma autoridade legitimada e que representa aqueles para quem a atenção é dirigida, ao se manifestar na forma de uma síntese, após um difícil e árduo diagnóstico. Nesse sentido, o discurso de Gettysburg conclui com louvor tais aspirações.

Interessa-nos aqui, de modo mais significativo, evidenciar a simetria existente entre o ocorrido – mais de sete mil mortos na batalha que ocorreu durante a Guerra Civil Americana (1861-1865) – Abraham Lincoln e o público que o ouviu quando da fundação de um cemitério nacional no palco dos acontecimentos beligerantes. Nota-se a ausência de polarização em relação aos lados opostos que participaram do conflito, mesmo que saibamos que Lincoln representasse até então o Norte da nação. Pode-se perceber então, que se trata de uma tentativa de se acolher e se dirigir a uma só nação a partir de configuração de uma tristeza extraordinária que de forma magistral Lincoln assinalava e também provocava a frustração dos ideais mais caros e relativos à fundação dos Estados Unidos.

Nada ali permite que a narrativa venha a ser tomada pelo sarcasmo, pela ironia ou cinismo. Nada igualmente possibilita a associação com interesses mesquinhos, como por exemplo, o da permanência no poder ou até mesmo em relação à vaidade por se estar perto dele. É na simplicidade que o discurso ganha austeridade, bem como o alcance longevo em direção à posteridade. Acredito então que o espaço futuro que lhe foi destinado seja o da manifestação da serenidade em um momento em que ela parecia se ausentar.

Retomo aqui esse evento histórico com o pensamento de que temos cada vez mais dificuldade de sair das esferas históricas que distam algumas poucas décadas em relação ao nosso presente. Já tive a oportunidade aqui de dispor que o passado tende a parecer prolixo, especialmente quando dele não se fez uma série, uma animação ou um filme que venha a concorrer às premiações de plantão. Assim, os temas que rondam a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria ou os acontecimentos remetidos à década de 1960 são retomados como um mantra.

Mas, nem por isso, as citações dirigidas a esses contextos são utilizadas na perspectiva relacionada às revisões historiográficas mais compenetradas, muito pelo contrário. O título dessa coluna faz menção a esse estado de coisas, a saber, a fala política que se referencia num evento histórico não busca mais a simetria com o público a partir do consenso entre o que aconteceu, o que se forjou no discurso e o que era ambicionado ouvir. Pelo contrário, no momento em que nos encontramos, os eventos passados são escolhidos com a intenção de promover e manter a polarização que especialmente agrada aos protagonistas dessa situação.

Sendo assim, os aspectos históricos que são trazidos à luz não merecem que sejam tratados enquanto tais, mas sim como motivos de engajamento, de estímulos à manifestação de uma ou outra corrente política. Nos tempos em que vivemos – obscuros o bastante para que seja revisto o que já foi conhecido como período de trevas – devemos duvidar das expressões passíveis de serem julgadas e assimiladas da mesma maneira como acontecera há 70 anos.

O fazer político hoje se traveste do aparato historiográfico que serve como moeda somente na medida em que alcança o desacato. Não mais se pretende a formação política a partir do reconhecimento mais profundo das diferentes teorias ou reflexões sociológicas. A finalidade do discurso político é alcançar uma resposta volátil de alguém que responde com aleivosias na primeira rede social que lhe parecer oportuna. Parafraseando Freud, às vezes, não é porque sonhamos com nazismo ou antissemitismo que de fato estejamos pensando nisso. Pode ser tão somente uma indicação de que quando entediados e conscientes, falamos de política somente para a satisfação de nossos instintos mais indecorosos e que se realizam na agressividade dos meios digitais. E é esse o comportamento mais almejado pelas elites políticas no contemporâneo.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

Entre em contato com a coluna
labo.behavior@gmail.com

Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.