
Quando um judeu escreve em alemão, ele está mentindo (frase colocada no quadro de avisos da Universidade de Leipzig em 1933)
Manter a rotina de escrita que se iniciava às 3h30 da madrugada, preservando o hábito da elaboração de um diário iniciado aos 16 anos de idade. Ter vivido para ver a publicação das leis raciais de Nuremberg em 1935 e a proibição de frequentar bibliotecas públicas em 1938. Ver a sua casa confiscada em 1940 e, a partir de 1941, ser obrigado a usar a estrela de David em público.
Esse são fatos da vida do filólogo Victor Klamperer (1881-1960), autor de mais de 4 mil páginas de diário e que, nos anos da Segunda Guerra Mundial, viveu em casas destinadas aos judeus que tivessem um laço de casamento com alguém que fosse alemã. Klemperer fez parte de um grupo de pessoas que, mesmo sendo de ascendência judaica, optou por permanecer em solo alemão, acompanhado de sua mulher, Eva Schlemmer (1906-1951). Considerando-se um cidadão alemão e convertido ao luteranismo, Victor Klemperer havia sido legitimado pela excelência de seus estudos nas muitas cidades que representavam o ponto máximo da cultura ocidental, dentre elas Munique, Genebra, Berlim, Paris e Roma. Em 1914, defendeu sua tese de livre-docência sobre Montesquieu em Munique e era reconhecido como uma autoridade no tema do iluminismo francês.
Impossibilitado de portar os livros que possuía em sua biblioteca quando da ascensão do nazismo, Klemperer era proibido de ler obras alemãs e, se fosse encontrado com uma delas, era submetido a um violento interrogatório. Era comum que ele se referisse ao seu diário como sendo uma vara de equilibrista em que se agarrava para não se desequilibrar e ser vencido como muitos pelo cotidiano de perseguições, de torturas e morte. Sua obra foi sendo recolhida e guardada por uma vizinha amiga, Annemarie Köhler, o que veio a possibilitar a sua publicação futura. Somos capazes de imaginar a lida de Klemperer para se manter sob a corda bamba?
De acordo com o autor, seu estímulo era o seguinte:
“Observe, estude, grave na memória o que está acontecendo agora, pois amanhã as coisas já não serão assim, amanhã você perceberá tudo de outra maneira; guarde esse momento na memória; perceba como as coisas acontecem e o influenciam agora”. (Victor Klamperer. LTI: A Linguagem do Terceiro Reich. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009, Tradução, apresentação e notas de Maria Bettina Paulina Oelsner, Kindle Edition, posição 629)
Durante os anos de infortúnio, Victor trabalhou em uma série de fábricas e graças a isso, bem como aos contatos com toda sorte de material escrito – manuais, almanaques, anuários de bolso, revistas jurídicas e farmacêuticas, avisos de casamentos ou necrológios – obteve as fontes para o que viria a ser a Linguagem do Terceiro Reich – LTI, Língua Tertii Imperii – livro publicado na Alemanha, em 1947.
Victor veio a realizar o mapeamento de palavras que, vindas do vocabulário nazista – fundado por Joseph Goebbells – passavam a ser compartilhadas por todos, inclusive aqueles que não possuíam afinidade com o nazismo. Para Klemperer,
“O domínio absoluto que esse pequeno grupo — ou melhor, que esse homem exerceu no domínio da linguagem se estendia por todo o âmbito da língua alemã, levando-se em conta que a LTI não fazia distinção entre linguagem oral e escrita. Para ela, tudo era discurso, arenga, alocução, invocação, incitamento. O estilo do ministro da propaganda não distinguia a linguagem do discurso e a linguagem dos textos, razão pela qual era tão fácil declamá-los. Deklamieren [declamar] significa literalmente falar alto sem prestar atenção ao que se diz. Vociferar. O estilo obrigatório para todos era berrar como um agitador berra na multidão.” (posição 904).
Foi assim que a dimensão do totalitarismo se instalou na gestão dos mais diversos afazeres do cotidiano. Expressões que denotassem superação, que se aproximassem de velocidade ou eufemismos de toda a sorte que de fato encobriam as perseguições, os assassinatos coletivos e o extermínio de doentes mentais.
Assim, com aspas: “na LTI, o emprego irônico predomina largamente sobre o neutro, pois ela odeia a neutralidade. Precisa ter sempre um adversário a ser rebaixado.” (posição 1970)
Ou com as abreviaturas:
“Se me perguntarem agora se e por que as abreviaturas devem constar entre as principais características da LTI, a resposta é clara. Nenhum estilo linguístico anterior empregou-as de maneira tão exagerada como o alemão de Hitler. A abreviatura moderna está inserida em qualquer lugar onde há tecnicismo e organização. Ora, a aspiração totalitária do nazismo impõe o tecnicismo e organiza tudo. Eis a razão da grande quantidade de abreviaturas”. (posição 2385)
Nas páginas finais da LTI, comparando com a compreensão iluminista sobre o sentido pejorativo da expressão fanático, Klemperer concluía que:
“Um ano depois do colapso do Terceiro Reich é possível apresentar uma prova de que o termo fanatisch (fanático), palavra-chave do nazismo, nunca perdeu seu aspecto maléfico original, apesar do uso abusivo: enquanto por toda parte restos da LTI são assimilados pela linguagem atual, a palavra fanatisch desapareceu. O que nos permite concluir que, na consciência popular, a verdade se manteve viva: um estado de espírito confuso, próximo da doença e do crime, havia sido considerado como virtude suprema durante doze anos.” (posição 1720)
No Brasil, Os diários de Victor Klemperer, no volume que cobre os anos de 1933 a 1945, foram publicados pela Companhia das Letras em 1999 e no momento estão indisponíveis. Já O diário da revolução, sobre Munique em 1919, pode ser encontrado na edição de 2021 pela editora Carambaia.
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447
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