
No século XIX, as famílias ricas se situavam, em geral por várias gerações, sempre em locais determinados. Em uma nação de peregrinos, a estabilidade de suas residências garantia certa continuidade. As famílias tradicionais eram reconhecidas como tais, em especial nas velhas cidades à beira-mar, somente pelo fato de que, ao resistirem ao hábito migratório, fixaram raízes. A sua insistência na inviolabilidade da propriedade privada era limitada pelo princípio de que os direitos à propriedade não eram absolutos ou incondicionais. A riqueza era compreendida como algo que carregava obrigações civis. As bibliotecas, os museus, os parques, as orquestras, as universidades, os hospitais e outras amenidades cívicas foram erguidos como monumentos à generosidade da classe alta. Christopher Lasch. A revolta das elites e a traição da democracia. São Paulo: Edições 70, 2024, pp. 15-16.
Elites zelosas que investiram em benfeitorias públicas, forjaram referências significativas para a sociedade como um todo. O abandono dessa dedicação cívica – a revolta das elites – pode ter contribuído para o descrédito em relação às demais obrigações, em especial aquelas que se remetem aos deveres de todos em uma democracia. Essa é a hipótese que se encontra na obra póstuma de Christopher Lasch (1932-1994) que acaba de ser publicada em português (a primeira edição é de 1996).
Em se tratando desse tema, o livro oferece possibilidades para que pensemos num fator que pode estar implicado nas crises de governabilidade que ressoam nas nações democráticas. A riqueza constituída por um seleto grupo de pessoas e legitimada enquanto privada, sempre pode ser motivo de ressentimento por parte daqueles que não privam dessa situação. Os investimentos afeitos à filantropia poderiam ser indicadores sutis de uma preocupação maior, mesmo que ela não fosse justificada somente por aqueles que estavam vivos. O altruísmo presente nesse tipo de comprometimento com o futuro alimentava o sentimento de coesão social e, portanto, o desejo de manutenção desse estado que dava guarida a esses procedimentos. As elites políticas e econômicas costumavam ocupar o posto de referência em várias civilizações do passado. Resta dizer que até mesmo as rupturas culturais mais ruidosas eram lideradas por elas.
Creio que quem tenha chegado até aqui possa estranhar esse percurso explicativo que dispôs num mesmo plano, as elites de uma nação, a atenção para com o bem público, as reponsabilidades cívicas e a crise de governabilidade. E talvez essa percepção seja devida ao desconhecimento da filiação teórica compartilhada por Christopher Lasch. Alexis de Tocqueville, Richard Sennett, Thomas Sowell e Frank Furedi devem ser retomados através do ponto comum que é o da crítica ao comportamento modelado pela democracia, em especial os que resvalam em modas e tendências que dependem unicamente da conjuntura do presente: viver como se não houvesse amanhã tem sido uma constante em nosso tempo.
Importante notar que essas situações havidas no passado contribuíram para a definição do critério de julgamento das qualidades tanto do capitalismo e quanto do comunismo. Retomemos aqui: as políticas públicas implantadas no governo de Franklin Roosevelt nos Estados Unidos dos anos 1930 tiveram semelhanças com aquelas que foram postas em prática nas nações que se orientaram pelo comunismo no século passado. Esse fato deve ter pesado para que se ficasse em dúvida sobre a eficácia desses dois sistemas político-econômicos. Retomo aqui esse contexto uma vez que tenho mais facilidade em compreender o aumento do ressentimento para com uma organização política, na medida em que já não se reconhece preocupação social alguma por parte de uma elite.
Lembramos então da imaginação moral burkeana que dá corpo à percepção de responsabilidades compartilhadas e que visam o bem público. O vínculo entre os mortos, os vivos e os não nascidos ganha um contorno mais preciso até porque não depende somente de intenções idealizadas numa ideologia que deve ser repetida à exaustão. O ufanismo afasta-se do ridículo quando são percebidos o cuidado e a dedicação daqueles que se encontram em posição de vantagem: se as pessoas podem estar e morar em locais mais distantes, porque ainda convivem e compartilham da nossa sorte? Christopher Lasch nos oferece uma reflexão que foi pautada pela experiência de gerações anteriores e que vivenciaram os esforços de solidariedade. Nessa direção, o engajamento das elites tornava-se uma referência para aqueles que não estivessem no mesmo nível econômico.
E se pensarmos no Brasil? O que há aqui na cultura das elites que possibilite a aproximação com a preocupação em relação ao bem-estar dos demais? Quais são os sinais passados por essa elite que transparecem essa atenção? O descuido com o bem comum e a desatenção com o que não tenha sido adquirido de modo privado perfazem nossa realidade cotidiana. As elites nos mostram que devemos ter receio delas. Seus meios de transporte privados transparecem agressividade. Os locais onde vivem são demarcados por muros, pela existência de câmeras e de seguranças particulares. Raramente as vemos ou sabemos onde moram. Hospitais e escolas são igualmente segregados.
A revolta das elites seria uma expressão possível de compreensão no Brasil ou nem sequer contamos com o reconhecimento do zelo pelo bem público que tenha sido intermediado pelos participantes desse grupo social?
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447
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