Behavior

Somos livros abertos quando realizamos sentido e elaboramos significados

Em síntese, as comunidades morais consistem em um espaço geográfico, uma população que se considera parte dessa comunidade, uma ampla interação social dentro dessa população, uma estrutura institucional composta por lideranças formais e informais, um senso de delimitação que separa os de dentro dos de fora, histórias e rituais que afirmam a natureza dessa limitação e práticas cotidianas que reforçam comportamental e verbalmente normas comuns sobre as obrigações das pessoas para consigo mesmas,  seus vizinhos e a comunidade. Robert Wuthnow. The Left Behind: Decline and Rage in Small-Town America. Princeton University Press. Edição do Kindle. (p. 43), 2018.

Divirto-me com a ideia de que seja possível identificar os suportes para a realização de sentido – meaning – que cada pessoa ou grupo venham a possuir. Trata-se de um jogo mental que é feito em público, quando há declarações de gostos, de afinidades por filmes ou livros. Quando há juízos sobre situações que envolvam moral ou costumes, melhor ainda. Mas dá para ir mais longe. Roupas, se temos tatuagens, pintamos os cabelos e de que cores. As associações com crenças religiosas ou os valores que são transmitidos. E se isso conta com algum tipo de estudo mais compenetrado.

Essas informações fornecidas aos montes dão sinais claros quanto ao que somos, o suficiente para a produção de sensibilizações de toda a sorte. No contemporâneo, não é difícil se fazer chorar. A linguagem do audiovisual nos adestrou às respostas de uma parafernália de sons e imagens, o suficiente para que microepifanias aconteçam.

Mas é preciso que se incite o público para que mais dados sejam oferecidos. Na impossibilidade de sermos somente neutros, nossas aspirações são reveladas a cada post. Não creio que passemos assim sem a necessidade de que alguns estímulos, o que pode se dar a partir de uma imagem, de uma ou duas palavras. E isso pode ser mais do que suficiente para se ter acesso a toda uma sequência de estados de alma.

Pierre Bourdieu é uma fonte e tanto para, além da percepção desses aspectos aparentemente desconectados, encetar o encaminhamento de associações que nos habilitem a situar as falas e as pessoas. Ver o espaço em que se circunscreve a nossa atuação, o campo, como um lugar de contenda ao mesmo tempo em que validar o que trazemos para a exposição como sendo um capital simbólico, muito nos auxilia na configuração do que ocorre quando nos manifestamos sobre os mais variados assuntos e temas.

Há então a possibilidade de aplicação de um método que melhor prospecte essas informações. Não que no passado não nos deparássemos com essas mesmas perspectivas mesmo que obtidas a partir da perspicácia de escritores que assim procediam quando da caracterização de situações e personagens. A literatura está repleta dessas narrativas que, para além de nos entreterem, abrem possibilidades associativas muito ricas. Nesse sentido, o livro cuja epígrafe se encontra acima também perfaz um bom exemplo.

Resultado de um trabalho de pesquisa empírica, no contato então com pessoas comuns que vivem nessas cidades que contam com um pouco mais de 14 mil habitantes, The left behind oferece contribuições para o reconhecimento dos motivos de voto em candidatos republicanos ou da direita radical, como Trump, por parte dessa população. Tendo o cuidado para apontar que esse público não perfaz um bloco homogêneo e nem sequer alienado da conjuntura mais ampla e globalizada, Robert Wuthnow enxerga tons e, por isso, identifica que no lugar do ressentimento, há o medo de se distanciar dessa rede de significados, ao mesmo tempo que tem raiva por estarem sob o alvo do governo e da opinião pública das metrópoles.

Querer trabalhar em paz, tomar uma cerveja após o expediente e maratonar esportes no final de semana. Some-se a isso, as relações de longa duração, as amizades da escola, os dates e a confiança em cada elo da corrente que dá suporte para o cotidiano. Ter a sensação de que se conhece todo mundo, ficar feliz com a vitória do time da cidade ou com uma reforma na Igreja ou no hospital local. A lista pode até ser maior, mas o seu teor seria o mesmo. Para Wuthnow, essas são evidências de uma comunidade moral – expressão emprestada do sociólogo Emile Durkheim – e o que viria a melhor definir o comportamento eleitoral dos cidadãos das pequenas cidades do interior dos Estados Unidos.

Na visão do autor e, como resultado de sua pesquisa, nos deparamos com pessoas cuja sensação de fratura se manifesta no contato com o declínio da natalidade, com escolas, pequenos e médios negócios fechando, fábricas abandonando as cidades e o aparecimento de laboratórios de metanfetamina. Uma vez que se tratam de sentimentos robustecidos pelas memórias de gerações passadas, a qualidade desse tipo de sofrimento ganha relevo e expressão. Tal compreensão, quando canalizada para a política e para o voto, dá guarida à oposição ao governo, simplesmente por ser ele o que é. Trata-se de uma matéria da inteligência mais sofisticada a de procurar respostas a essas escolhas mantendo distância dos preconceitos de plantão e dos bordões que somente pretendem identificar o que há de mais ridículo naqueles que não se parecem conosco.

Não, as produções Woke não são capazes de chegarem perto dessa percepção mesmo porque, se ela fornecesse suporte para o mainstream, o resultado seria tão água com açúcar quanto qualquer série que aborda os temas existenciais da moda.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.