Behavior

Teria a democracia conhecido a sua obsolescência no Ocidente?

“O problema com a ideia social democrática é que ela não provê nem vende nenhum dos excitantes produtos ideológicos que movimentos totalitários – comunistas, fascistas ou esquerdistas – oferecem a jovens sonhadores. Não tem uma solução definitiva para todo o infortúnio humano; não tem receita para a salvação total da humanidade; não pode prometer o fogo de artifício da revolução final para resolver definitivamente todos os conflitos e lutas; não inventou dispositivos milagrosos para concretizar a perfeita união dos homens ou a fraternidade universal; não acredita em uma vitória final e fácil contra o mal. Não é divertida; é difícil e não é compensadora, e não sofre de cegueira autoimposta.” Leszek Kolakowski. “O desafio social-democrata” in Sidney Hook et. al. A social-democracia nos Estados Unidos. Brasília: Instituto Teotônio Vilela, 1999, pp. 39, 40.

Em 1978, o filósofo de origem polonesa, Leszek Kolakowski (1927-2009) realizou um discurso na convenção social democrata norte-americana, do qual o trecho acima fez parte. A preocupação do autor se direcionava para as falsas expectativas em relação à democracia, especialmente se demandassem soluções grandiosas para dilemas morais e existenciais. Percebia-se também a sua atenção para com os eventos de 1968 que ainda repercutiam em manifestações e atitudes inspiradas nas ideologias de esquerda que se mantinham robustas nesse período. Kolakowski faziam menção às ditaduras que estavam presentes na América Latina mesmo que o que mais lhe preocupasse era o poder de propagação do comunismo soviético. Uma palavra também era concedida ao que acreditava ser um descuido com a educação nos Estados Unidos, de forma que ela ficava em segundo plano em detrimento do entretenimento.

Creio que muitos de nós concordemos com a abordagem do filósofo polonês e somos capazes de circunscrevê-la hoje, mesmo que não se suponha grande repercussão. Os pontos assinalados pelo autor em relação àquilo que a democracia não é, se causavam compreensão e aceitação na época em que foram pronunciados, hoje é provável que não. Deixamos de operar no Ocidente na perspectiva então ainda existente que era a da guerra fria. Também não acredito que sua fala abriria a perspectiva de sensibilização por parte daqueles que hoje somente veem equívocos da ordem da idealização e que se encontram nos regimes democráticos. Tampouco Kolakowski poderia supor o recrudescimento dos populismos de esquerda e direita que alcançariam o poder tendo como ponta de lança o ataque às instituições públicas.

Na perspectiva da história factual, entre os acontecimentos do ano de 1978, destacava-se a assinatura do acordo que colocou um fim no conflito entre Israel e Egito. Coube ao presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter (1924), receber os líderes Menachem Begin (1913-1992) e Anwar Al Sadat (1918-1981) em Camp David, Maryland. Esse seria o ano dos três Papas, com o falecimento de Paulo VI (1897-1978) e de seu sucessor João Paulo I (1912-1978) e com o início do papado de João Paulo II (1920-2005). Na China, Deng Xiaoping (1904-1997) seria eleito o líder supremo e daria início a uma reforma econômica que reverteria as políticas de Mao Tsé-Tung (1893-1976). Os Estados Unidos lançariam o primeiro satélite de posicionamento global. O terrorista Unabomber (1942-2023) faria o seu primeiro ataque. O ex-primeiro ministro italiano Aldo Moro (1927-1978) seria sequestrado e assassinado pelo grupo terrorista Brigate Rosse. O pastor norte-americano Jim Jones (1931-1978) seria o responsável pelo suicídio coletivo de 909 pessoas nas Guianas. A seleção argentina de futebol sagrou-se campeã da Copa do Mundo realizada em seu país. A primeira bandeira LGBT seria desfraldada em São Francisco, no ano em que Harvey Milk (1930-1978) seria o primeiro político assumidamente gay a alcançar um posto equivalente ao de prefeito nos Estados Unidos. Nesse mesmo ano, Milk seria assassinado.

A retomada de datas desperta em nós a percepção da aleatoriedade, uma vez que seria impossível atar alguns dos eventos aqui mencionados aos desfechos dessas situações 46 anos depois. Mesmo assim, alguns dos fatos elencados acima fizeram parte do contexto que conduziu Kolakowski a proferir o seu discurso. No entanto, minha escolha dessa passagem de sua reflexão não esconde a aspiração pela aproximação com o que hoje se manifesta no Ocidente como sendo uma crise da democracia.

O pronunciamento do autor leva o nosso olhar para aquilo que não se pode esperar da democracia, sendo que o final de seu discurso mais aproxima essas expectativas daquelas que se manifestam nas religiões. Mas não perdemos de vista a tensão de Kolakowski com o nível educacional necessário ao melhor convívio com o regime democrático, a seu ver, complexo o suficiente para que não seja apreendido como algo banal. Nessa direção, a manifestação do autor se mostrou acertada ainda mais quando pensamos e recuperamos o desgaste do modelo democrático acumulado ainda mais pelas demandas surgidas nas redes sociais digitais.

O que hoje nos mobiliza parece mais ser a obsolescência do modelo democrático nos países mais ricos do planeta. Pode ser que a distância havida entre o cotidiano e a política tenha alcançado mais expressividade e por isso as preocupações com o que venha a se ligar à crença na representatividade tenha esmaecido. O entendimento contemporâneo que se tem da política parece ser apenas mobilizador de atenção quando ela permite ser traduzida e assimilada do modo mais simples possível, a partir da hipotética luta do bem contra o mal. As associações havidas entre política, ideologias e marketing pessoal sinalizam o distanciamento de uma época em que os valores da democracia poderiam ser habilitados através da menção ao conceito de liberdade. Contudo, não seria essa fragilidade um aspecto presente no próprio exercício da democracia? Não estaria no próprio funcionamento da democracia, o afastamento mais completo daquilo que poderia lhe facultar a permanência das virtudes que se manifestaram primeiramente quando essa forma de governo ainda transparecia frescor?

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

Entre em contato com a coluna
labo.behavior@gmail.com

Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.