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Os profetas originais da modernidade

“As ideias dos economistas e filósofos políticos, certas ou erradas, são mais poderosas do que comumente se acredita. Na verdade, o mundo é governado por pouco mais do que isso. Homens práticos, que acreditam estarem isentos de qualquer influência intelectual, são usualmente escravos de algum economista defunto. Maníacos com autoridade, que escutam vozes no ar, destilam o frenesi de algum escriba acadêmico de poucos anos antes. John Maynard Keynes”. Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. Apud. John Gray, “Os modernizadores originais”. In Anatomia de John Gray: melhores ensaios. Rio de Janeiro: Editora Record, 2011, p. 302.

Os textos de John Gray (1948) são uma experiência de leitura que se faz com volúpia, sorvendo cada parágrafo como se fosse o melhor de outros que virão para ocupar esse lugar. Sua narrativa atrai especialmente por nos convencer através do conhecimento que possui do percurso das ideias filosóficas ao mesmo tempo em que destrincha e nos comunica os aspectos pessoais e bibliográficos – mesmo que por vezes, indiscretos – dos nomes ali encaminhados. Nesse quesito, “Os modernizadores originais” é uma joia adornada de pedras preciosas.

De acordo com Gray,

“Os positivistas – Condorcet (1743-1794), Saint-Simon (1760–1825) e Auguste Comte (1814–1816) – são os profetas originais da modernidade, Através de influência sobre Marx (1818-1883), eles estão por trás dos regimes comunistas do século XX. Ao mesmo tempo, graças à influência que exerceram sobre a formação da ciência econômica, inspiraram os engenheiros sociais utópicos que construíram o livre mercado global depois do colapso do planejamento centralizado comunista”. (p. 291)

O que isso significa para muitos de nós que nos arriscamos a trilhar o percurso expositivo de Gray, é que nossas crenças mais robustas estão próximas das ideias que julgamos ter superado. Mas, diga-se, a frustração pode ser bem maior. Principalmente quando sabemos que o positivismo se apresentou como um catecismo, com direito ao ensinamento da prática da reza que totalizasse duas horas e que fosse realizada por três vezes ao longo dia, uma para a sua mãe, outra para sua mulher e a final, para sua filha. Ao final das orações, o adepto deveria fazer o sinal da cruz, batendo com o seu dedo na cabeça “em três vezes e nos pontos em que, de acordo com a ciência da frenologia, estavam situados os impulsos da benevolência, ordem e progresso”. (p. 295)

Esses são aspectos risíveis e que de nada incidem como uma dúvida com poder de abalar as nossas crenças. E se fossem essas as contradições, continuaríamos certos de que prosseguimos seguramente na direção do acerto. No entanto, os dogmas do positivismo podem mudar essa situação. Vejamos quais são.

A história impulsionada pelo poder da ciência é o primeiro deles. Sendo que o conhecimento crescente e as novas tecnologias determinam as mudanças sociais. A ciência irá banir os males da guerra e da pobreza é o segundo. Terceiro: ciência e ética na política progridem de mãos dadas fazendo com que os valores humanos se convirjam.

Esses fundamentos do catecismo positivista já escancaram possibilidades associativas mais incômodas e que fazem parecer que não seja assim tão fácil que um indivíduo letrado e informado consiga manter a sua distância de segurança em relação aos facilmente tacháveis de negacionistas, os que creem no terraplanismo ou de que chagamos de fato à lua, todos aqueles, enfim, que nos acostumamos a colocar no cantinho da ignorância. Muito pelo contrário. Um positivismo melhorado – o que já era previsto no credo comtiano – nos traria confiança na medida em que reforçaria as nossas certezas, que uma vez embasadas nos princípios científicos, levaria a nos livrar do mal. Mas John Gray nos assevera que não.

O positivismo estaria em boa companhia da frenologia, por conta das crenças deliberadas no poder dos especialistas que julgariam as pessoas através da antropometria. Iria se sentir em casa nas profecias do Marx quando de sua reabilitação do credo de Saint-Simon de que os conflitos deixariam de existir uma vez que não houvesse mais a necessidade de poder. Iria se aconchegar no Círculo de Viena, espaço de credibilidade na ciência combinada com a lógica e a matemática. Por último, a seita do positivismo iria ver com naturalidade a defesa do livre mercado como aparato da liberdade.

E aqui chegamos na conclusão do artigo de Gray: o erro maior dos positivistas, quando aplicado à economia, foi o de pretender se afastar de duas teorias clássicas, de Adam Smith (1723-1790) ou Adam Ferguson (1723-1816), colocando a matemática no lugar da história.

“Separar a economia da história levou a um penetrante irrealismo na disciplina. Os economistas clássicos sabiam que as leis do mercado são apenas destilações do comportamento humano.  Assim sendo, contam com as limitações de todos os gêneros de conhecimento histórico. A história demonstra muita regularidade na conduta humana. Também mostra suficiente variedade para tornar a busca de leis universais uma empresa vã. É duvidoso que as várias formas de estudos sociais possuam uma única lei em igualdade de condições com as das ciências físicas”. (p.301)

Deus nos livre e guarde das profecias da modernidade!

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.