
Certa vez comecei a ler um artigo filosófico sobre o amor. Após algumas linhas, topei com a seguinte afirmação: “João ama Maria se, e somente se…” Nesse ponto, parei de ler. Essa abordagem formalizada era imprópria para tratar um assunto como o amor, porque o fenômeno real, com toda a probabilidade, ficaria perdido no processo. Assim, o leitor não deve esperar afirmações do tipo: “Pedro está entediado se, e somente se…” Como Aristóteles assinala, não podemos procurar alcançar o mesmo nível de precisão em todos os assuntos; temos de nos contentar com aquele que o próprio assunto permite. O tédio é um fenômeno vago, multiforme, e acredito que um ensaio longo, e não uma dissertação estritamente analítica, seja a forma mais adequada para investigá-lo. Svendsen, Lars. Filosofia do tédio (Portuguese Edition) (pp. 4-5). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
O que é o tédio, afinal? Ao que parece, somente podemos nos aproximar dele se agirmos à moda impressionista com largas pinceladas de diferentes matizes, que se não terminam por compor um retrato, ao menos estabelecem alguma identidade com o que sentimos. E, de acordo com Svendsen, jamais poderíamos encetar o tema se quiséssemos realizar um diagnóstico daqueles que lemos e que são tão frios quanto gelo. Uma descrição como se fora o de um manual de engenharia tampouco nos atrairia.
Seguindo um itinerário que passa pela contribuição de filósofos, psicólogos, escritores, compositores e cineastas, Lars Svendsen nos comunica mais exatamente o que já pressentíamos acerca desse sentimento. E o faz a partir de uma série de alusões realizadas por pessoas de peso. Quer saber?
Para Fernando Pessoa,
“há sensações que são sonos, que ocupam como uma névoa toda a extensão do espírito, que não deixam pensar, não deixam agir, que não deixam claramente ser (…) é uma bebedeira de não ser nada, e a vontade é um balde despejado para o quintal por um movimento indolente do pé à passagem”. (Fernando Pessoa, Livro do desassossego. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 108. Apud, Lars Svendsen, pp. 8-9).
E Georges Bernanos:
“É uma espécie de pó. A gente vai e volta sem o ver, respira-o, come-o, bebe-o; é tão tênue, tão fino, que nem ao menos range nos dentes. Mas se a gente para um segundo, ei-lo que cobre nosso rosto, nossa mão. Temos de nos sacudir, sem cessar, para libertar-nos dessa chuva de cinza. Daí por que o mundo tanto se agita”. (Georges Bernanos, Diário de um pároco de aldeia. São Paulo: É Realizações, 2001, p. 8. Apud Lars Svendsen, p. 9)
Finalmente, em Robert Nisbet, o tédio
“pode ser a raiz de muitos males, mas também pôs fim a muitos males, pela simples razão de que eles se tornam, pouco a pouco, entediantes demais”. E, em relação à prática de se queimar feiticeiras, se no começo, vencia o tédio, depois não mais: ‘quando você viu uma pessoa sendo queimada, viu todas’”. (Robert Nisbet, “Boredom” in Prejudices: a philosophical dictionary. Cambridge e Londres, 1982, p. 26. Apud, Lars Svendsen, p.11)
Ficamos sabendo que na corte do absolutismo francês, somente o monarca tinha o privilégio de se sentir entediado, pois do contrário como poderia um súdito se entediar sem que isso fosse visto como uma ofensa ao rei? E de maneira semelhante, os monges que caiam no tédio em meio à leitura das escrituras estariam sinalizando que faltava algo a Deus? Teriam eles concordado que Adão e Eva sentiram o mesmo quando estavam no paraíso?
E quanto à nossa obsessão pelas novidades e por aquilo que seja interessante? Nada de valores perenes ou duradouros, mas sim a busca pelo que quer que seja interessante. Lars nos diz que “foi a partir do romantismo que surgiu a necessidade de que a vida fosse interessante, com a pretensão geral que o eu deveria de realizar”. (p. 22) Para o autor, os românticos criaram a necessidade dos significados, contanto que eles fossem construídos por eles próprios. E a vida do dia a dia, se não nos provê de sentido, nos faz sentir como se estivéssemos em uma prisão.
“O homem é viciado em significado (…) Não suportamos viver sem algum tipo de conteúdo que possamos ver como constituidor de significado. A falta de sentido é entediante (…) O tédio pode ser descrito como um desconforto que comunica que a necessidade de significado não está sendo satisfeita”. (p. 24)
E uma tipologia do tédio, seria possível? De acordo com Martin Doehlemann, haveria:
“O tédio situacional, que sentimos ao esperar alguém, ao ouvir uma conferência ou ao tomar um trem; o tédio da saciedade, quando obtemos demais da mesma coisa e tudo se torna banal; o tédio existencial, em que a alma está sem conteúdo e o mundo em ponto morto; e o tédio criativo, que é caracterizado menos por seu conteúdo que por seu resultado: sentimo-nos forçados a fazer algo de novo”. (Martin Doehlemann, Langweile? Deutung eines verbreiteten Phanomens. Frankfurt, 1991, pp. 22-23, Apud Lars Svendsen, p. 34.
E para que se termine essa glosa, com um grand finale, fiquemos com Emil Cioran:
“Não creio que eu gostaria dos franceses se eles não tivessem se entediado tanto ao longo de sua história. Mas seu tédio é desprovido de infinito. É o tédio da clareza. É o cansaço diante das coisas compreendidas”. (Emil Cioran, Sobre a França. Belo Horizonte: Âyiné, 2020, p. 19).
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447
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