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Toda indignação política é seletiva e proveniente de um cálculo estratégico

As acusações de pós-verdade, fake news ou genocídio não possuem lastro nos significados, mas sim, são apenas meios de ataque às linhas de pensamento político com as quais não se tem identidade prévia. Essa percepção não deveria nos surpreender pois são muitos os indícios de que se trata mesmo de um jogo de cena desde o momento em que a política se tornou um assunto woke, isto é, desde quando ela passou a ser divulgada a partir de produções infanto-juvenis que fazem pink money ou de filmes de super-heróis afinados com causas sociais. Imagine como os políticos profissionais se divertem com uma mobilização de rua que se utiliza de uma máscara de um personagem de alguma superprodução norte-americana?

Muita gente por aí achou ótimo poder confundir política com cores de camisa ou com gírias do momento, mesmo porque perceberam a possibilidade de que isso pudesse gerar engajamento nas redes em que atuam. Toda essa parafernália – os amantes dos automóveis falavam em carenagem, hoje se diz customizar – para fazer parecer que você esteja de um lado dos espectros ideológicos. Quando tudo isso não é feito por robôs, mas por gente mesmo com nome e sobrenome significa que tem uma galera aí com tempo sobrando para pensar no que desconhece.

Gente crescida e experienteaboletou-se nos primeiros lugares da discussão política e confundiu memes com leitura e estudo da história das posições políticas. Quem dera se viéssemos a supor as teorias … Nenhum conhecimento misturado com vontade de aparecer deu nisso: uso de expressões sem ao menos ter a noção do que significam.

Isso, em um país como o nosso, do homem cordial do Sérgio Buarque de Holanda que somente tem como mira agradar ao grupo a que pertence e se ele é de trabalho, ninguém segura. Caráter é algo que faz mal às finanças ainda mais por aqui em que esses espaços são disputados a tapa. Pensar contra, somente se estiver escondido num quarto escuro e não deixando nada publicado.

Esse comportamento se torna mais perceptível, é claro, quando mobilizado por acontecimentos que chegam ao horário nobre: o brasileiro segue ativamente a babá eletrônica que é a TV e usa as redes sociais para o preenchimento de seu tédio que é imenso. Não falha jamais. Terrorismo do Hamas contra Israel; questionamento e dúvidas em relação aos procedimentos científicos; genocídio; ultra direita; eleições na República Bolivariana da Venezuela; invasão do Capitólio ou de Brasília. A lista pode continuar, mas eu evitarei trazer dados do passado uma vez que a década de 1980 já é pré-história e somente estes a conhecem a partir de histórias em quadrinhos ou por intermédio da manifestação de algum líder de uma banda de rock de terceira categoria.

Esses são alguns insights inspirados por uma obra publicada recentemente nos Estados Unidos. Estamos falando de Trolling ourselves to death: democracy in the age of social media, de Jason Hannan (NY: Oxford University Press, 2024). O eixo mobilizador do livro se encontra na busca por compreender como as democracias contemporâneas passaram a conviver com agressões naturalizadas e com suporte em fake news e preconceitos de toda sorte. Evidentemente o autor pensa nos casos do Reino Unido, da Itália, Hungria ou Índia. Mais uma prova que o Brasil somente figura nas pesquisas globais por conta de algum acidente ecológico na Amazônia.

O diferencial no caso desse estudo foi a dedicação de Jason Hannan em se voltar para duas obras do século passado que, na visão do autor, abrem perspectivas para relações com o que hoje acontece: Amazing ourselves to death: public discourse in the age of show business, de Nel Postman (New York: Penguin, 1985) e After virtue: a study in moral theory, de Alasdair MacIntyre (Noter Dame: University of Notre Dame Press, 1981).

De Postman, Hannan recupera o entendimento de que as estratégias de TV – então na década de 1980 – teriam transformado a política num aparato de entretenimento uma vez que a preocupação maior era manter o interesse da audiência. Hannan somente se distancia de Postman por entender que hoje estejamos muito mais próximos da narrativa distópica de George Orwell do que da de Aldous Huxley. De fato, os dois minutos de ódio que geravam engajamento na Oceania do Big Brother estão na raiz do que viria a ocorrer nas redes sociais digitais.

Já em MacIntyre, o que despertou o interesse de Hannan foi o tema da moral e isso pela percepção do autor do embaralhamento que ocorre nas redes sociais entre comportamento político e moralidade. Para MacIntyre, ao termos perdido o contato com um corpo moral compartilhado – típico das sociedades mais tradicionais – partimos para uma experiência de acerto e erro validada nas escolhas individuais, quando então, o discurso público fragmentou-se e desordenou-se.

A partir dessas demarcações, Jason Hannan nos oferece muitos exemplos e situações obtidas em pesquisas realizadas sobre o tema da crise da democracia, bem como do ruidoso comportamento nas redes sociais. Um único aspecto que incomoda é o autor guardar para si uma espécie de reserva moral mais alinhada aos vieses políticos de esquerda, carregando então nas tintas contra o que quer que venha das hostes de direita. Em nosso ver, deve-se encaminhar a suspeita para o fazer político, submetendo-o então a uma reflexão que se oriente pelo ceticismo. No mais, fake news ou agressividade nas redes não podem mais ser vistos como provenientes de somente um dos lados dos espectros políticos: a ignorância é estrategicamente compartilhada e podemos asseverar que o que a direita faz hoje e nos assusta, a esquerda irá retribuir assim que for possível.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.