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A luta pelas causas sociais foi precificada e se manifesta nas redes sociais

Precificar é palavra da moda. Assim como o verbo alinhar e entregar, não uma pizza, mas um serviço. Pode ser um filme, em relação ao diretor que o realizou, um livro ou uma pizza mesmo, quando você vai comê-la no endereço em que ela foi feita, e se a pizzaria fez o que disse que ia fazer, a melhor pizza da cidade, por exemplo. No jargão jornalístico essas palavras aparecem aos montes. Verbos substantivados fazem parte do contexto norte-americano de facilitação da linguagem, uma vez que como sabemos, trata-se de um país em que a dificuldade de abstração deu lugar ao que seja mais útil. O jornalismo que se faz por aqui assimilou essas modas uma vez que deve se escrever para preencher espaços e dar conta dos toques que foram prescritos.

Mas falemos de ideias, como aquelas que se qualificam como causas, e que foram precificadas há algum tempo. Autores que tentam sair da bolha Woke, apontam que defendemos causas para que tudo permaneça como está. As lutas por um mundo melhor nada mais são do que um aspecto do comportamento, em que uma pessoa quer se vender como mais ciosa e preocupada com o bem do próximo. Mas, não. Nossos antepassados que de fato se preocupavam com os desfavorecidos e que faziam atividades práticas a esse respeito, logo sacariam que somos obcecados por causas que funcionem bem como um post e nada mais.

Conheci gente que recebeu parentes doentes em casa, uma vez que moravam longe dos hospitais e dos médicos. Uma outra pessoa, que uma vez aposentada, passou a dedicar-se diuturnamente ao asilo de sua cidade sem que recebesse nenhum salário. Famílias que recebiam pessoas sem rendimentos quando das festas de final de ano. Outros que faziam trabalhos voluntários para entidades filantrópicas que estavam ligadas ao braço prático de uma denominação religiosa. Pessoas que paravam o seu carro para auxiliar um motorista cujo carro enguiçou.

Thomas Sowell, também relatava como a sua família acolheu uma tia de muita idade que não tinha onde morar (“A Duty to Die” in The Thomas Sowell Reader. New York: Basic Books, 2011, pp. 8-9). Ele retomava essa história, dizendo que mesmo pobre, foram feitos esforços para receber a parente. Sowell questionava uma fala que era a do direito de morrer, quando se chegasse em uma certa idade, para que a pessoa não se tornasse um fardo para a família. Com isso, o autor queria apontar que nos tornamos incomparavelmente mais miseráveis com o passar do tempo. Épocas de privações produziram um maior número de pessoas dispostas a dividir o pouco que tinham com os outros. E quando não o faziam, eram reconhecidas como muquiranas e individualistas. Tais comportamentos eram percebidos e notados, uma vez que contrastavam com o que era ensinado em casa, no ensino formal ou através do grupo que se privava identidade.

E hoje? Andando pelas ruas de uma cidade, observamos que as atitudes de agradecimento mudam de acordo com o CEP ou em relação a quem se trata, se mais ou menos abastados. O hábito de parar antes da faixa de pedestre, por exemplo, quando alguém se coloca para fazer a travessia, nos oferece possibilidades de percepção de posturas diferentes. Quando mais ricos, as pessoas tomam como uma obrigação que os motoristas parem para que elas possam atravessar. E por isso, não há nenhum agradecimento. O mesmo se nota quando se dá passagem para um carro entrar em frente ao seu. A coisa muda de figura quando se tratam de pessoas que não possuem o mesmo CEP. Por vezes, atravessam com rapidez no entendimento de que você pode estar atrapalhando o trânsito ao parar. E costumeiramente agradecem.

Dizíamos no passado que isso se aprendia em casa e que dependia de berço. Nesse caso, nada que necessariamente indicasse riqueza, mas sim uma preocupação com o outro em se tratando de educação. Hipóteses para essa mudança? Tenho uma que passa pelo que poderíamos chamar de falta de reconhecimento. Sentir-se agradecido, nesse caso, significa dar-se conta de que houve avanços, de que algo foi alcançado e que as coisas poderiam ser piores.

Pode ser que a militância tenha revestido os comportamentos de uma constante vigília de luta. Talvez seja tão somente uma manifestação de egocentrismo na sua forma mais miserável: eu e minha causa somos o centro do mundo. A fatura que nunca se paga e que continuamente se torna mais cara agiria então como um ponto de partida e um aviso de demarcação de fronteira. Mas, como se supor um comportamento desse se estamos às voltas com a presença de várias causas que são todas unificadas na defesa dos desfavorecidos, de moradias populares, do acolhimento de pessoas que vivem nas ruas, dos dependentes químicos, da reforma agrária e das minorias identitárias?

Outras hipóteses? Passar-se a imagem que se ajuda quem mais necessita através da indicação pública em quem se escolheu votar. O voto moral é esse em que a pessoa quer cravar a imagem de que é alguém preocupado com os outros. Na pandemia, essas atitudes se manifestavam no brado “viva o SUS!”. Passado esse tempo, muitos dos que assim falavam somente frequentam os hospitais privados. Quem fez algo pelo SUS? Vida longa tem a hipocrisia para quem transita pelos ambientes digitais cujo verdadeiro foco é a promoção de si próprio.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.