Behavior

Do medinho de que a direita chegue ao poder

A internet nos tornou frouxos? Pode bem ser que sim, uma vez que do conforto dos nossos quartos, dedilhamos no celular o que quer que seja grandioso e virtuoso na defesa de tudo o que pode ser defendido. Madre Teresa de Calcutá que nos tornamos, farejamos boas causas mesmo que incipientes, até as ainda não criadas. Mas confessamos os nossos medinhos também e, nesse quesito, o pânico de que a direita chegue ao poder é grandioso. Nele unem-se todas as pessoas de bem, gente que se acostumou a humilhar os que não se parecem com eles que até deixam de notar que o fazem.

Creio que seja importante se perguntar sobre os motivos dessa crise de pânico. Podemos iniciar pensando nos boomers já envelhecidos que foram versados em política a partir de filmes como Três dias de condor (1975) ou em Todos os homens do presidente (1976). Gente que passou a adolescência nos locais em que a política embalava os sonhos com uma trilha sonora que compunha com cores belas e horrendas, assim, ao gosto do freguês. Galera que perdeu o pudor de parecer tiete tanto de atores como de lideranças políticas melosas. Um político fofo é quase como crer no terraplanismo. Alguém já chorou em um comício político? Emocionou-se com um jingle de um partido? Além do ridículo da situação, nenhuma espécie de bom senso poderia tirar o cidadão desse transe hipnótico. Não há aí ceticismo que dê conta de conduzir à suspensão do juízo.

Essa atmosfera, ao invés de predispor à luta, pelo contrário, os coloca de joelhos e gera os piores pesadelos que ao que parece, não os deixam dormir em paz. Outro marcador de comportamento remete ao convívio massivo nas bolhas de relacionamento digital, o local por excelência em que o mundo se divide entre os virtuosos e aqueles que não o são. Nesse mundo paralelo, a coragem se manifesta em memes e na ridicularização de quem pensa diferente o que também combina com o uso de trocadilhos que exponham algum tipo de sabedoria sádica. Nessa prática, nada supera os jornalistas, uma vez que um número razoável deles abandonou por completo a objetividade e se tornou cheerleader de agremiações políticas. É disso que Mathieu Bock-Côtè fala na passagem seguinte:

“O jornalismo político não se emancipou da mitologia do Watergate, que não o leva a pôr em cena, da maneira mais objetiva possível, os grandes desafios de uma sociedade, mas a tirar sistematicamente do esconderijo o golpe ou a armação por trás do poder. Embora essa transparência idealizada não seja desprovida de virtudes, conduz a uma dessacralização integral do poder e já não tolera ser contestada. Decerto os políticos não merecem crédito apenas pelo que dizem. Não é garantido, porém, que não se possa afirmar o mesmo em relação à mídia”. Bock-Côté, Mathieu. O Império do Politicamente Correto. São Paulo: É Realizações Editora, 2020, p. 39. Edição do Kindle.

A referência que mencionei de filmes que edificaram o idealismo na política está na origem da cultura woke, essa peste que se abateu sobre o ocidente e que vem dando cobertura para o sumiço do enfrentamento. Imaginemos uma predisposição assim quando da Segunda Guerra Mundial. E se os aliados tivessem medo dos nazistas? E se o exército soviético fosse cancelado por conta da batalha de Stalingrado? E se a população do Ocidente optasse pelo confronto somente através de abaixo-assinados? Suponha o que os militantes de Tik Tok fariam se essa tecnologia já existisse na década de 1940? Teríamos dancinhas contra as SS?

Ou então, pensemos em uma manifestação de rua. Daquelas com palavras de ordem e que mobilizam quem mora perto das áreas nobres das grandes cidades. Tudo que busca mimetizar a coragem, mas que passa bem longe dela. Fosse o contrário e não se veria por aí o tanto de gente que morre de medo de a direita chegar ao poder. Dessa ficção fazem parte os símbolos escolhidos a dedo e que retomam o fascismo como se ele tivesse ocorrido ontem. E pensamos que o uso da história é feito com destemor mesmo porque é bastante notório que ninguém aspira por se defrontar com o contraditório em relação ao passado. A militância digital hoje, que mais se parece com a ação conspiratória em situações como a da caça às bruxas, finge conhecer a história passada mesmo que somente tome contato com o que vem a confirmar o viés que antes já se tinha. Afinal, com tanto tempo dedicado às postagens nas redes sociais, bem como aos sermões educativos nos grupos de WhatsApp o que sobra para algo tão parado quanto a leitura?

Percebo que o que dá suporte para esse enredo seja o entendimento de que a ficção ganhe vida na realidade e não o contrário. É que se pode depreender uma vez que muitos acolhem a ideia de que haja intenções políticas objetivamente maléficas e que são efetivas como aquelas que conhecíamos dos regimes totalitários. Abandona-se a leitura do Príncipe de Maquiavel, o livro que a todos inicia no comportamento político e onde se aprende que sempre teremos sinais trocados em uma fala que se manifeste politicamente.

Voltemos ao início dessa reflexão. Por que nos tornamos tão medrosos é uma pergunta que escolhi como a melhor tradução do que hoje se percebe como um sentimento nutrido por quem se encontra mais à esquerda. E se optássemos por buscar o que pode ter se mostrado como viciado no discurso genérico da esquerda? E se nutríssemos mais respeito e consideração por aqueles que, antes de nós, se manifestaram efetivamente no enfrentamento de um grupo político que não inspirasse confiança? As redes sociais deram estímulo e espaço para o que de mais infantil reside em muitos de nós. E é por isso que armamos o nosso palanque digital e blefamos não termos o medo que dentro de nós é bem próximo do descontrole. No passado recente, se nos comportássemos assim, o fascismo raiz nos comeria com farofa.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

Entre em contato com a coluna
labo.behavior@gmail.com

Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.