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Por que a imprensa tradicional se tornou tão óbvia?

Todos podemos identificar uma coesão entre vários e distintos tipos de veículos de comunicação, independente dos seus alvos, produto, serviços ou audiência. Há uma proximidade de vieses entre todos esses casos. Os exemplos são muitos. Uma ação publicitária leva em consideração a moldura que, do ponto de vista dos matizes ali dispostos, deve dispor a igualdade de gênero e se posicionar contra o etarismo, o racismo ou o capacitismo. Uma produção audiovisual também deve se comportar assim, explorando narrativas que sejam escoradas pelo mesmo tipo de encaminhamento. Os livros que concorrem ao prêmio Jabuti apresentam tramas que passam por esses marcadores, ou seja, histórias de liberação feminina ou de enfrentamento entre personagens negras contra o racismo, dito estrutural. A historiografia orienta-se por esses princípios e os objetos de estudo escolhidos dão amparo ao que venha a justificar desmandos de pessoas brancas, de mulheres oprimidas ou indígenas expulsos de suas terras. Enfim, a lista é grande, mas aqui nos deteremos num caso em especial: a imprensa tradicional, compreendida aqui pelos jornais mais lidos e que contam com reputação construída em muitas décadas.

Os temas das matérias, das entrevistas e das colunas, majoritariamente todas e em qualquer editoria, refazem esse percurso. Uma matéria sobre esportes sinaliza o percentual de mulheres golfistas, mesatenistas ou que praticam boxe. Na área de cultura, um livro, peça de teatro, filme ou música é exaltado quando apresenta narrativas que opõe minorias identitárias ao mainstream branco, patriarcal e misógino. Na gastronomia, pesquisas apontando o aumento de chefes de cozinha que são mulheres o que reflete o empoderamento – um patuá utilizado pelos pertencentes a essa corporação – feminino, e assim por diante. Textos e mais textos que se estendem no uso dos pronomes como no caso de todas, todos e todes, o que nos parece mais refletir a intenção de demonstrar uma credencial para os poucos que entendem esse uso mesmo que a audiência em geral, sequer leve essas expressões a sério. Não se nota tensão no uso equivocado da língua portuguesa, uma vez que a militância justifica inclusive essa manobra. Assim, sem que aparentemente se perceba, um dialeto vai se desenvolvendo e que é composto por expressões cifradas e raciocínios específicos para os iniciados. Um universo paralelo é criado e ele dispõe uma outra realidade, mesmo que entrevista em uma bolha. De tanto frequentá-la, acredita-se que o mundo tem essas cores e que somente os preconceituosos não podem vê-las.

De fato, quem se daria ao trabalho de conhecer toda essa série de símbolos e significados se não por necessidade de manter-se no emprego e alcançar projeção em seu campo de trabalho? Essa é nossa melhor hipótese uma vez que não supomos que tantas pessoas assim, caminhando em uníssono, estejam tão preocupadas com o outro. Pelo contrário, a defesa dessas causas tem como objetivo aumentar o destaque profissional de cada pessoa que assim se manifesta. Todos estão muito preocupados consigo mesmo, o que faz com que não se tenha tempo para pensar no próximo, a não ser como uma estratégia pragmática de ajuste aos tempos presentes.

Num quadro assim descrito, em que diferentes mídias caminham juntas, unificadas sob a égide de algumas bandeiras, a sensação que aumenta prodigiosamente, é a da obviedade, isso quando se está dentro dessa bolha, mas que já se percebeu que ela é uma barca furada. Interessante observar que alguns profissionais da internet constataram isso e ganham dinheiro na lacração, uma vez que sabem o que vão enfrentar. Veja o caso recente de candidatos às prefeituras que ganharam notoriedade por se colocarem em confronto com essa cultura a que nos referimos aqui. Quando em entrevistas, esses candidatos já sabiam sobre o que seriam perguntados, uma vez que quem os entrevistava, militava a partir de um viés em consonância com as pautas apontadas acima. Assim, se um candidato declaradamente de direita se vê confrontado pela imprensa tradicional, ele bem sabe sobre o que será questionado.

Como consequência, temos o despreparo cada vez maior dos jornalistas que sequer precisam rever o seu repertório. Creio que esse seja um resultado nefasto e que também afasta parte da audiência. Teríamos alternativas de enfrentamento dessa situação? Uma possibilidade seria voltar a praticar a objetividade, partindo do pressuposto do ceticismo e evitando a todo custo que uma matéria sobre qualquer tema seja absorvida pela militância. Sabe-se que a imprensa é parte importante da polarização política, mesmo que ela queira passar a ideia de ser a vítima e o último bastião da liberdade. A blindagem necessária do jornalismo tem como sequela a falta de empenho na produção de dados e narrativas que venham a ser interessantes já que estes ampliam o conhecimento sobre um assunto ou que nos apresentem algo que não sabíamos de antemão.

Não será exatamente isso que está faltando no contexto da comunicação em que vivemos no Ocidente? Assim nos parece quando percebemos, sem surpresa ou histeria, a vitória de candidatos identificados com a direita, da queda da audiência dos filmes norte-americanos que falam de heróis do identitarismo e da queda na leitura de livros que igualmente passam pelos mesmos assuntos. Poderíamos prestar mais atenção à dissonância que se apresenta e que vem dando sinais de sua presença há algum tempo, mesmo que as eleições recentes tenham demarcado com precisão esses sentimentos.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.