
O fascismo cabe inteiro em seu fim, o comunismo conserva um pouco do encanto de seus primórdios: explica-se o paradoxo pela sobrevivência desse famoso sentido da História, outro nome de sua necessidade, que serve de religião para aqueles que não têm religião e, portanto, é tão difícil e até tão doloroso de abandonar. Ora, é preciso fazer esse trabalho do luto para entender o século XX. François Furet. O passado de uma ilusão. São Paulo: Siciliano, 1995, p. 15.
Francois Furet (1927-1997) foi um historiador na contramão de sua corporação, haja visto que desde cedo afastou-se da abordagem marxista de matriz teleológica, mesmo que tenha se mantido fiel no enfrentamento do contraditório. Foi a partir de uma abordagem dialética que Furet foi capaz de logo se desvencilhar do que ele chamava “as mitologias históricas”, a saber, a Revolução Francesa e o comunismo. No livro cuja citação acima está, o historiador fez o que se propôs, procedendo meticulosamente na autópsia de um corpo que terminara de respirar há pouco.
É necessário recordar aqui que, quando da escrita dessa obra, o desaparecimento do comunismo enquanto uma experiência concreta de governo chamava tanto a atenção quanto a crise da democracia nos dias em que vivemos. No entanto, a reflexão que ali se fazia se configurava de uma forma mais profunda do que aquela que nos deparamos no pensamento público contemporâneo. Pode-se dizer que mesmo aqueles que eram de esquerda, enfrentavam esse tema com mais propriedade, entrevendo por exemplo que o desvio do programa comunista havia se iniciado quando da morte de Josef Stalin (1878-1953) e logo após Nikita Khrushchev (1894-1971) assumir a liderança da então União Soviética.
Lembremos também que o contexto político compartilhava da presença de grandes estadistas, tais como Ronald Reagan (1911-2004), Margaret Thatcher (1925-2013) ou Karol Wojtyla, o Papa João Paulo (1920-2005), sem esquecer Mikhail Gorbachev (1931-2022). É a ele que o historiador John Lewis Gaddis se reporta nessa passagem:
“E assim a Guerra Fria terminou, muito mais abruptamente do que começou. Como Gorbachev disse a Bush em Malta, foram as ‘pessoas comuns’ que fizeram isso acontecer: os húngaros que declararam seu arame farpado obsoleto e correram para o funeral de um homem morto há trinta e um anos; os poloneses que surpreenderam o Solidariedade ao levá-lo ao poder; os alemães orientais que tiraram férias na Hungria, escalaram cercas de embaixadas em Praga, humilharam Honecker em seu próprio desfile, persuadiram a polícia a não atirar em Leipzig e, finalmente, abriram um portão que derrubou um muro e reuniu um país. Líderes — atônitos, horrorizados, exultantes, encorajados, perdidos, sem noção — lutaram para retomar a iniciativa, mas descobriram que só poderiam fazê-lo reconhecendo que o que antes parecia incrível agora era inevitável. Aqueles que não conseguiram acabaram depostos, como Honecker, ou injuriados, como Deng, ou mortos, como Ceausescu. Gorbachev, repudiado em casa, mas reverenciado no exterior, consolou-se fundando um think tank.” John Lewis Gaddis. The Cold War: a new history. New York: Penguin Books, 2007, p. 259.
A alusão à presença das pessoas comuns chega a ser premonitória na comparação com o que hoje ocorre nas democracias contemporâneas, igualmente atônitas pela escolha do retorno da direita ao poder. Da mesma forma, é interessante observar a surpresa das lideranças na derrubada do comunismo, diga-se, para nunca mais voltar. Durante algum tempo se buscou as causas do ocorrido, o que com o tempo deixou de mobilizar a todos. Na realidade, o que ocorrera nos países comunistas europeus por mais de setenta anos veio a se esfacelar de dentro para fora, sem que houvesse sequer estampido de uma bomba ou de um tiro. Mas se o fim do aparato ideológico de esquerda aconteceu de modo repentino, não se nota o mesmo em relação aos ideais ali esposados, mesmo que sequer tenham se aproximado de sua consumação.
É o que nos faz acreditar quando ainda nos deparamos com propostas ditas de esquerda ou com países, mesmo sem o glamour inicialmente conhecido, que se definem como comunistas ou socialistas. Porém, preocupados que somos com o que nos une ao passado, ou seja, os eventos e seus significados que chegam até nós, nos perguntamos sobre a qualidade das ideias de esquerda que chegam até o tempo presente.
Parece-nos que um milésimo daquela atmosfera que deu lugar à fé no comunismo pode vir a ser recuperada ao longo das duas últimas décadas. Voltamos a nos encontrar com esse tema ao nos debruçar na literatura especializada e que se detém nos acontecimentos remetidos ao fato aqui abordado. É com interesse, contudo, que notamos a repercussão da esquerda nas modas que dão suporte a uma gama de produtos e que alcança os meios articuladores de significado desde o final do século XX.
Nossa hipótese é que a presença desses ideais encontre o seu ponto de sustentação no que houve no passado e que foi comutado no que veio a se aproximar dos melodramas, essa sendo a forma com que acompanhamos a manifestação da militância identitária que tomou para si o bastão antes manejado pelos ideólogos do comunismo. E, para tanto, nos ocorre a interferência dos Estados Unidos, aqui pensado como uma das mais influentes nações produtoras de narrativas-chiclete. Se o comunismo raiz parece a muitos de nós extremamente violento, a crença em personagens que se aproximem da jornada do herói manifesta grande fôlego.
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447
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