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Governar no Brasil é fazer do puxadinho uma prática cotidiana

“A visão alternativa proposta aqui pode ser chamada de relato elitista da crise democrática. ‘Elitista’ se tornou um termo desdenhoso no discurso moderno, especialmente na disputa de discussões sobre democracia. Meu objetivo ao empregá-lo aqui não é entrar em debates normativos complexos sobre os papéis apropriados de líderes e cidadãos na política democrática. É simplesmente ressaltar a notável desconexão da opinião pública comum dos desenvolvimentos que são comumente tomados como indicativos de uma “crise da democracia” na Europa contemporânea, e o papel crucial da liderança política na preservação ou desmantelamento de instituições e procedimentos democráticos.” Larry Bartels. Democracy Erodes from the Top: Leaders, citizens, and challenge of populism in Europe. Princeton: Princeton University Press, 2023, p. 3.

Acostumados que fomos a receber as informações como se elas fossem neutras, permanecemos hipnotizados no stand-by: já sabíamos antes e somente confirmamos isso quando algo de imprevisível aconteceu. Assim, as ideias correspondem aos eventos, antes mesmo destes terem acontecido.  Larry Bartels e Christopher Achen (Democracy for Realists: why elections do not produce responsive government. Princeton University Press: Princeton & Oxford, 2017) constataram esse juízo quando definiram o conceito de folk theory, aplicado especificamente em relação à democracia. Com ele, os autores pretenderam demarcar o aspecto metafísico presente na concepção que se tem sobre a democracia, aquela que encontramos na repetição de mantras tais como “o governo do povo, para o povo e pelo povo”. Para os autores, alusões como essas prestam um desserviço epistemológico uma vez que carecem de objetividade, estando para a definição analítica, como O Pequeno Príncipe para a filosofia existencialista.

Procurar pela definição de um conceito através de bravatas retóricas não nos aproxima de uma reflexão madura, destemida ou cética. O primeiro passo para a emissão de um julgamento não seria supor que muito do que se diz sobre ele pode não fazer sentido algum? Alexis de Tocqueville bem sabia disso quando nos remeteu à tirania da maioria e na percepção de que a democracia, de tão fascinante e envolvente, impede mais a crítica e o distanciamento do que o absolutismo monárquico.

Andando pelos mesmos caminhos tocquevileanos, Larry Bartels, voltou a carga em sua última obra, para o questionamento do tema da crise da democracia. Será que a repetição ad infinitum dessa expressão fez com que acreditássemos que essa crise propriamente dita existisse na realidade? Poderíamos estar às voltas com mais um dos conceitos forjados nas redações jornalísticas e respaldados e legitimados pela intelligentsia?

A resposta a essas perguntas foi dada a partir de entrevistas realizadas in loco com os cidadãos de algumas nações da Europa. O apoio ou não à democracia foi sondado a partir de questões que confrontavam uma série de temas sensíveis, tais como a crise do euro, o fim do Welfare State, a imigração e a onda populista. Em todos esses casos, notou-se o apreço popular pela democracia, variando um pouco para cima e para baixo dependendo dos países avaliados. Somente a proposta de uma pesquisa com essa finalidade já pode nos fazer pensar se não estamos defronte a uma crise forjada da democracia. Devemos ter em mente quando tudo isso começou, especialmente quando candidatos não consensuais foram eleitos pela maioria. Vende-se por aí a ideia de que estejamos elegendo Mussolinis ou Stalins.

A erosão da democracia se inicia por cima, por aqueles que detém o poder de criar leis, de julgar ou de executar. Na prática, os pesos e contrapesos, tão caros aos federalistas norte-americanos podem ser trocados por cartadas ou canetadas. Mas é claro que esse estado de coisas depende muito da cultura e da cor local de cada nação implicada ou não na democracia. Um país como o nosso, cujo fascínio pelo autoritarismo tinge as bandeiras de direita e de esquerda, os exemplos se acumulam. O povo não sabe votar é um juízo que dá suporte às mais variadas medidas de constrangimento da liberdade mais básica.

Ativismos de toda sorte, mas em especial o Judiciário, têm preenchido o tédio de quem acordou com o objetivo de salvar o país e que, portanto, se vale de um tipo de hermenêutica para lá de psicodélica. No Brasil, temos a infeliz situação de as lideranças não terem pudor perante a desfaçatez, não se enrubescerem jamais e nada pensarem em relação ao futuro. No arremedo de estadistas que temos o que se tem por referência é o fato de que o futuro não importa, não gera votos e nem admiração.

Façamos uma proposta aqui. Experimente perguntar para uma alguém comum – que esteja às voltas com o cotidiano mais prosaico, aquele do trabalho, das contas, idas aos restaurantes e etc. – o que ele pensa sobre a democracia, se ela é a favor ou não, ou se prefere uma ditadura. Perguntas assim não farão o menor sentido. Mas não porque essas criaturas revelem desconhecimento ou ignorância. É porque elas não fazem sentido mesmo. Trata-se somente de uma imensa abstração que alcança a sua eficiência no manuseio dos poucos que ocupam os cargos de poder. São essas as pessoas que não estão nem aí para a democracia.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.