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Ainda temos alguma coisa a aprender com o passado?

“Os céticos argumentaram que o conhecimento histórico não fornecerá muita ajuda. O industrial americano Henry Ford caracterizou a história como ‘besteira’. Embora sua observação provavelmente diga mais sobre a limitação de Ford do que sobre a história, outros luminares expressaram reservas semelhantes. No século XVII, o cientista e matemático francês René Descartes temia que a curiosidade sobre o passado resultasse em ignorância do presente. Outro francês, François Marie Arouet de Voltaire, um filósofo e historiador, descreveu a história como ‘um pacote de truques que pregamos nos mortos’. Ele quis dizer a zombaria como um apelo por mais precisão na história escrita. No entanto, os céticos podem interpretá-la erroneamente como apoio a uma crítica clássica. Os historiadores, dizem os críticos, se dividem em três campos: aqueles que contam mentiras, aqueles que estão errados e aqueles que não sabem. Mesmo um pensador tão poderoso quanto Georg Wilhelm Friedrich Hegel, um alemão do século XIX, reclamou que a única coisa que aprendemos com a história é que ninguém aprende muito com a história.” Mark T. Gilderhus. History and historians: a historiographical introduction. New Jersey: Prentice Hall, 2010, p. 1.

Apesar de aparentar ser portadora de universalidade, a pergunta que intitula essa coluna não se qualifica enquanto tal. Ela não faria sentido se fosse feita nos séculos passados, da pré-história ao século XIX. A história tal qual a conhecemos é muito jovem, isso se considerarmos a sua definição no que veio a ser conhecido pelo nome de historicismo. Devemos isso ao historiador alemão Leopold von Ranke (1795-1886). Coube a ele a modelagem da prática de pesquisa, a sistematização do uso de fontes primárias da época que se pretende conhecer e a comprovação da validade histórica desses documentos e suas críticas internas e externas. Esse processo legitimado seria concluído com a aceitação tácita de que conheceríamos o que verdadeiramente aconteceu no passado.

O historicismo se tornou um modelo e referência e se alastrou para outros países, caso dos Estados Unidos e da França. Eram frequentes então as participações nos seminários promovidos pelas universidades germânicas como meio de propagação dessa prática metodológica. No Brasil, a principal referência seria a do historiador cearense João Capistrano de Abreu (1853-1927), preocupado que era em desvendar os nomes de quem escreveu os livros de história brasileira, caso de André João Antonil, na verdade João Antônio Andreoni, o autor de Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, publicado em 1711.  

Mas, o que havia antes disso no que dizia respeito ao que hoje conhecemos como historiografia? Crônicas, relatos em primeira pessoa, testemunhos colhidos de quem houvesse participado do evento estudado, biografias no modelo das Vidas dos doze Césares, de Suetônio, sem se esquecer de História de Heródoto e A história da guerra do Peloponeso, de Tucídides. É claro que essas obras foram lidas ao longo do tempo como narrativas relacionadas à época em que foram escritas. A atmosfera do pensamento do século XIX foi refratária a esse tipo de formatação do passado e, portanto, veio a inaugurar um outro status para o conhecimento histórico. Nesse sentido, a ciência histórica nasceu em conjunto com outros vieses epistemológicos, a sociologia, a antropologia ou a biologia, por exemplo. Para Phillipe Ariès (O tempo da história. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989), nesse instante, o historiador se sentia mais próximo do biólogo do que de quem escrevia crônicas históricas.

Mas e hoje, teríamos indícios de que o passado pode nos ensinar? A história é um ativo que interessa no contemporâneo ou somente é um conteúdo para o entretenimento? Vamos examinar algumas situações como modo de testagem da razoabilidade ou não dessas perguntas.

Técnicas e práticas, por exemplo. Aprendemos a segurar garfos e facas, a costurar, escrever, subir paredes, dirigir automóveis e etc. Essas habilidades são passadas de uma geração para outra e algumas delas são muito antigas. Permaneceram por se mostrarem úteis e persistiram por ainda fazerem sentido no presente.

Histórias familiares. Talvez o caso mais antigo de conteúdo histórico por natureza. Chega-nos através das conversas de quem conheceu aqueles que já se foram, através de nós mesmos que os conhecemos ou por intermédio de narrativas orais. Com o tempo, a presença de escritos e fotografias deu suporte e amparo para essas narrativas.

A história mestre da vida, nos moldes do que foi escrito no humanismo greco-latino e recuperado no Renascimento por Nicolau Maquiavel se configura num outro meio de perpetuação do aprendizado a partir dos relatos do que de mais edificante e virtuoso as pessoas do passado foram capazes de fazer. Por isso, elas são destacadas como grandes referências.

Mas, e fora desses casos? Temos somente as pessoas que por diletantismo ou por profissão, consomem os conteúdos de história. Entendo que estrategistas militares levem em consideração o passado porque podem aprender com as batalhas já ocorridas. Usos particulares do passado também contam, algo como não se passar mais por uma determinada rua que uma pessoa foi assaltada, por exemplo. Fora disso, nada.

A história é muito vasta para que possibilite ver pinçado um acontecimento que se mostre válido no cotidiano prosaico que compartilhamos. O mantra da história que se repete tem algum sentido, uma vez que sim, podemos reinventar a roda uma infinidade de vezes, inclusive porque quase tudo do que aconteceu nem sequer é lembrado. E não nos esqueçamos dos vieses, ou seja, alguns eventos são recuperados de uma maneira em especial uma vez que fazem sentido estratégico para aqueles que lutam pelo poder no presente. A influência do nariz de Cleópatra é uma anedota que faz todo o sentido pois demonstra que o que ocorreu há milênios não nos importa nem um pouco. Ao menos não em relação ao nosso conhecimento. Na prática, é claro que somos produtos de uma série de eventos e realizações ocorridas nos tempos pretéritos.

A modernidade concede mais importância ao futuro do que ao passado e o presente. Viver o amanhã tem sido o nosso mote, de tal forma nos julgamos superiores em comparação com épocas passadas que são escolhidas a dedo. De modo semelhante aos nossos ancestrais, não damos a mínima importância para o passado, a não ser que essa recuperação tenha alguma utilidade.

Exceções podem ser feitas e pensadas quando recuperamos alguns locais do mundo em que a existência de prédios e construções de um passado mais remoto nos fazem lembrar o quão insignificante somos nós perante o tempo que tudo reduz a pó. A presença massiva do passado em nosso dia a dia pode sim nos humanizar. Mas, infelizmente, nem com isso podemos contar num país como o Brasil e numa cidade como São Paulo, em que o passado é destruído de uma forma bastante agressiva para que novos empreendimentos sem alma tomem o seu lugar. Por essas bandas, somos mais destinados à repetição histórica que se faz de um modo tão sincopado quanto um transtorno obsessivo-compulsivo.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.