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Liberdade x Igualdade: Esaú e Jacó na democracia

Nas democracias, ao contrário, todos os homens são semelhantes e fazem coisas mais ou menos idênticas. São sujeitos, é verdade, a grandes e contínuas vicissitudes; mas, como os mesmos sucessos e os mesmos reveses voltam continuamente, somente o nome dos atores é diferente, a peça é a mesma. O aspecto da sociedade americana é agitado, porque os homens e as coisas mudam constantemente; e é monótono, porque todas as mudanças são iguais. Alexis de Tocquevile. A Democracia na América, (volume 2. São Paulo: Martins Fontes, 2019, p. 285. Original de 1832). introduction. New Jersey: Prentice Hall, 2010, p. 1.

O comportamento segue sendo um foco para vários tipos de estudo, no nosso caso em especial, nas relações com a política. Já tive a oportunidade de aqui tratar de abordagens mais clássicas, do campo da filosofia política que hoje podemos perceber, passaram pelo crivo do comportamento. Alexis de Tocqueville, já citado aqui, pode ser visto como um caso exemplar neste aspecto. A Democracia na América (São Paulo: Martins Fontes, Volume 1 de 2014 e o volume 2, de 2019), figura com distinção neste tipo de análise que passa pela concepção das atitudes e das alterações no cotidiano daquele que vive numa democracia.

É importante que se retome e recorde que a democracia era uma novidade no tempo da produção de Tocqueville, nos anos 30 do século XIX e que os Estados Unidos apareciam como um único caso em que este sistema de governo tinha sido posto em prática. A bibliografia específica sobre a história da democracia nos conta que até o Renascimento, num caso que se remete à história da Holanda, nenhum país supunha colocar em prática um sistema como o democrático. A principal crítica seria a de que que muito dificilmente as pessoas iriam aceitar o peso da igualdade, uma vez que reconheceriam aqueles que eram superiores bem como os que não o fossem. Sendo assim, a democracia somente poderia ser imposta pela força. Tocqueville era ciente disto também.

O fato então de Alexis de Tocqueville ter viajado para a América na companhia de Gustave Beaumont guarda proximidade com o interesse despertado por este tipo de sistema político que no momento não era referencial nem majoritário. A obra que foi resultado desta viagem é uma referência de análise apaixonada dos acertos e dos riscos da democracia. O leitor dessa coluna deve levar em consideração que os conceitos de liberdade e igualdade se degladiam nas páginas da Democracia da América, sendo que o autor demostra uma preocupação com a falta de preparo para perceber se a liberdade corre algum tipo de risco uma vez que na democracia, um sem número de índices existem para que se questione a ausência da igualdade, que de longe, é mais fácil de ser identificada. Para o autor, a liberdade exigiria de nós que nos postássemos em relação a ela como se estivéssemos na presença do sagrado, tal seria a dificuldade de percebê-la, se ainda a temos ou se já a perdemos.

E a preocupação de Tocqueville pode ser bem compreendida uma vez que liberdade era um tema clássico da filosofia, sendo que sua presença como uma questão, se manifesta inclusive nos mitos primordiais. Estes são os temas que vieram a mobilizar o jovem pensador quando de sua visita à América. O comportamento tendo destaque especialmente em relação ao cotidiano da pessoa que se acha no interior de uma democracia. Percebemos que a frase “quem você pensa que é?” “ou “who the hell do you think you are?” bem consegue captar a facilidade com que se dá conta de que houve algum tipo de privilégio e de quem alguém foi passado para trás.

Outra das indicações notadas pelo autor em relação ao comportamento daquele que vive numa democracia, diz respeito à necessidade de distanciamento de seus antepassados na medida em que, para se ganhar a vida, costuma-se separar-se uns dos outros, cruzando estados e fronteiras. E se o problema na aristocracia era o egoísmo – que poderia ser questionado em relação ao bem comum -, a democracia vê surgir o individualismo contra o qual nada pode ser feito uma vez que mais e mais depende-se de si próprio no andamento dos mais variados negócios. Finalmente, a preocupação com as humanidades, com a teoria e com a reflexão mais detida, perde espaço para o domínio daquelas habilidades que podem se mostrar úteis no cotidiano, o que o autor chama de “preferência pelas ocupações práticas”.

A leitura da obra nos mostra o colorido da vida mais concreta nos momentos de nascimento da democracia. Tomamos contato com o rumor das ruas, a curiosidade do povo, a expectativa pelas notícias mais pueris que são buscadas nos muitos órgãos de imprensa. A irresistibilidade da democracia, bem como o risco do aparecimento de uma tirania nunca vista, inclusive por jamais poder ser questionada, estabeleceram-se também como uma referência para se pensar o sistema democrático, especialmente nos vários casos em que ele é somente tomado por suas virtudes.

Tais aspectos dentre outros, perfazem em A Democracia na América, uma obra fundamental para aqueles que se detêm na pesquisa do Comportamento Político. Não seria viável uma pesquisa que viesse a mensurar tais distinções de apreciação entre a igualdade e a liberdade na democracia brasileira? Poderíamos também mapear expressões que viessem a sinalizar aproximações com igualdade ou liberdade? As considerações de Tocqueville ainda se mostrariam válidas?

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.